sábado, 1 de fevereiro de 2014

Crítica: "O Menino e o Mundo"

Título original: O Menino e o Mundo
Brasil, 2013, 80 min.
Direção: Alê Abreu
Roteiro: Alê Abreu
Elenco: Vinicius Garcia, Lu Horta, Marco Aurélio Campos





Aos olhos de uma criança


por Gabriel George Martins

Quando tinha meus sete, oito anos, costumava inventar novos e muitíssimo interessantes amigos imaginários para me divertir. Era simples: dava-lhe um nome, umas poucas características, e saía por aí conversando com ele. Conversando. Minha família certamente acreditava que eu tinha algo de especial. Mas a única especialidade minha era o fato de ser criança, e eles, adultos.

Lembro-me um pouco mais acuradamente de um deles, apenas. Hellmanns (sim, por causa da maionese) era um sujeito cheio de não-me-toques e ideias nada claras. Certa feita, disse à minha irmã para não se sentar em tal cadeira; "O Hellmanns tá sentado aí!", alertei. Numa entrevista com um grupo de psicólogos — acho que eram psicólogos, não me lembro —, perguntaram sobre Hellmanns, e eu lhes dei todos os detalhes desse meu colega. Os especialistas se entreolhavam, rindo, como se vissem graça naquilo ou soubessem o que significava. Eu não sabia o que significava. Sabia que Hellmanns era alguém sempre próximo, e ao mesmo tempo invisível aos olhos de todos.

Ele não durou muito. Sumiu, sem deixar saudades, em algum momento da infância tão esquecido quanto os outros amigos imaginários. O porque de ele ter ido embora não constitui uma pergunta. Ora, era natural, e inevitável. Algo mais interessante viria: amigos reais, namoradas, livros, filmes. Hoje — literalmente hoje, pois entrei nessa reflexão há menos de trinta minutos —, acredito que Hellmanns jamais tenha existido, mesmo para mim. Porque Hellmanns era eu. Parece muito óbvio, mas para mim nunca foi clara essa proposição, nunca foi fácil conceber a existência dele em mim, e de mim nele, mutuamente. Hellmanns era a forma como eu via o mundo — Hellmanns era a forma como eu me via diante do mundo. Não à toa, por vezes ainda me sinto invisível perto das pessoas, uma sensação ora engraçada, ora odiosa. Éramos um só Menino, diante de um vasto e assustador Mundo.

Mas onde termina o Menino e começa o Mundo? Impossível dizer. As coisas se mesclam, num olhar pueril e ingênuo. Quando o Menino é o Mundo, torna-se mais aceitável a infância aos olhos de quem já não é criança. Se o Mundo não é o Menino, porém, sobra-nos a desilusão, a amargura no olhar, a realidade em cores mortas.

Pois, precisamente, a animação O Menino e o Mundo parte não de um, mas dos dois pressupostos. A contraposição entre a rudeza da realidade e o ludicismo da infância, de um lado, e sua simbiose, do outro. Resulta na universalidade da obra, que não é nem voltada exclusivamente ao público infantil, nem se apresenta como adulta. Em vez disso, o longa de Alê Abreu (Garoto Cósmico) comunica ao ser humano. E não só ao brasileiro, mas a todo ser humano, a partir de suas múltiplas esferas (psicológica, econômica, emocional, social), sua pluralidade temática — atópica e atemporal —, e de sua estranha linguagem. Estranha, porque suas frases de trás para frente nada dizem de claro, mas explicitam sem problemas suas intenções; constituem nova língua, língua de todos. Estranha, pois numa era de reinado absoluto da animação 3D, opta pela simplicidade, por desenhos em papel, em estilo assumidamente infantil.

O filme acompanha o Menino — ou Oninem, na língua ao contrário. Na ocasião da partida de seu pai, que se vai para a cidade em busca de melhores condições de vida, ele decide abandonar sua mãe e sua aldeia para procurá-lo. Passa pelo campo, e chega à cidade, descobrindo um Mundo bastante diferente de sua pacata vida. Na bagagem, leva apenas uma fotografia da família, e na memória carrega o som da flauta do pai.

O ruído, aliás, importante elemento da obra, se faz mostrar em vários momentos. O som visual, colorido, é mais uma das brincadeiras narrativas de que Abreu dispõe para construir seu atraente universo. Para as crianças, tem a graça; para os adultos, ressalta a natureza viva do Mundo sob o olhar do Menino. É a primeira relação simbiótica da trama. Ainda aparece novamente, nas ondas sonoras unicolores de uma sirene fabril, e na figura do pássaro colorido, criado pela batucada de um bloco carnavalesco.

Com as cores, vêm a impressão de movimento suave que guia a narrativa. A música, portanto, evocando as cores, é diretamente responsável por esses movimentos. Não à toa, a trilha de Gustavo Kurlat e Ruben Feffer — com participação de Emicida e do grupo Barbatuques — abusa de ritmos festivos e doces para construir a atmosfera delicada da aldeia do Menino e de algumas personagens. Em oposição a isso, os ritmos ordenados e repetitivos se associam à dureza do Mundo. A manifestação disso também se dá na movimentação dos caracteres, e parece muito apropriado que aos olhos do Menino (e aos nossos) os batuques do bloco sejam acompanhados de uma dança espalhafatosa e desordenada, e a sirene da fábrica traga consigo um outro tipo de dança, mecânica, como é o trabalho. Lembra, de longe, a coreografia no maquinário de Metropolis — na qual os operários apenas ensaiam sua auto-imolação ao deus Moloch.

A mecanização, ademais, é um ponto chave na trama. Se as máquinas podem ser encaradas como uma oportunidade para o homem desfrutar de si mesmo mais livremente, o longa de Abreu adota um ponto de vista (quase) oposto. Afinal, aqui as máquinas serviriam meramente como pretexto para a marginalização dos indivíduos, e concentração de poder na mão de uns poucos privilegiados. Mas a distopia é distorcida pelo olhar afável da criança, e as máquinas, embora ainda implacáveis, assumem a forma de bichos-máquina. Bichos são o que crianças conhecem e assimilam do mundo, e levam para outros campos: uma grande embarcação se torna um gigantesco pato metálico, o trem é uma minhoca metálica fumante...

Também, no meio da prisão do trânsito, abarrotado de carros (máquinas, enfim), a bicicleta irrompe, com sua modéstia libertadora. Proporciona ao humano o entretenimento que o trabalho não lhe dá. Não só: é capaz de se metamorfosear, de um meio de transporte a um instrumento musical. Um retorno aos dois atributos primordias do filme: o som e a cor. Ambos podendo ser guardados em receptáculos, como todos gostariam que fossem. A cor se retém na fotografia — mais parecida com uma pintura do próprio Menino, bem como todo o Mundo. O som fica num pote, escondido, enterrado, pronto a ser consultado se assim se desejar. São maneiras eficazes de preservar uma memória que certamente falhará um dia, e o Menino parece saber disso.

E é sabendo disso que, mesmo sem querer, ele acaba atraindo para si figuras paternas nos dois ambientes, campo e cidade. São substituições impensadas e improvisadas de seu próprio pai, e terminam por preencher as lacunas em sua memórias; lacunas de situações em que a presença de um pai era fundamental.

Cada figura denota, seja no trabalho, seja na postura, toda uma lógica exploratória em andamento, e evoluindo para melhor nos ferrar. E dentre as ferramentas usadas para essa exploração, a propaganda se destaca por ser onipresente — e onipotente, como um deus (Moloch?), por atingir a todos. A propaganda, sabiamente retratada por Abreu como um amontoado de mensagens em meios diversos (nada muito diferente do que é em nosso mundo), é um convite aloucado ao consumo, embora nada ofereça de bom aos consumidores. Aos olhos do Menino, é algo maluco e incompreensível; mas é fácil apostar que, na ótica de seu temporário tutor na cidade, a coisa não diverge tanto.

A propaganda se verifica aqui, e ali, e ali, e mais ali, rompendo com a beleza do colorido natural ou mesmo do branco, onde todas as outras cores flutuam. O branco é a presença de todas elas. Já o preto — das máquinas, da polícia —, ausência delas, engole-as todas, como engole aos humanos, um a um, em razão de sua essência predatória. Não suficiente, o desenho dos lápis nos oferece backgrounds despojados, mas completos, valorizando os espaços. Seja o caos poluído da metrópole (geometria quebrada, abuso de vértices, cores mortas), seja o vazio da aldeia (formas mais arredondadas, excesso de branco, pitacos harmonicamente coloridos).

Com ares experimentais, O Menino e o Mundo ousa em inúmeras perspectivas. Nenhuma parece tão sólida quanto o retrato multidimensional da infância; não só a adolescência, afinal, é época de desbravamento interior. A criança, pouco sabendo disso, se conhece perante o mundo — em simultâneo, conhece também o próprio mundo. O movimento de simbiose para contraposição, e vice-versa, é constante e ininterrupto. O aprendizado retirado daí fica para toda uma vida, e nunca é impossível observar o quanto de uma criança permanece em um adulto.

Eu, por exemplo, nunca deixei de ser uma criança. Mesmo aos 18 anos, quase 19, jamais cessei de descobrir algo novo. Se não com a frequência desejada, com a regularidade que me é permitida. Coisas que me despertam a criatividade, em geral, ou tão somente me divertem. Tenho ainda comigo uma coleção de desenhos feitas entre a 4ª e a 6ª série, imitando jogos de tabuleiro, com 30 ou 32 casas e desafios, pontos a serem conquistados... Datam todos de depois de Hellmanns, mas não seria um exagero afirmar que provavelmente foi ele quem os fez por mim. Hoje, sou incapaz de fazer um esboço decente de desenho. E, no entanto, naquela época fiz vários, cada um com seu charme especial. Por que não haveria de ter algo de Hellmanns ali? Ele com certeza foi meu impulso criativo, atualmente voltado aos textos. Meus desenhos e textos sintetizam Hellmanns, e Hellmanns sou eu. Ele era meu Mundo, e o Mundo éramos nós, Menino.

Nota: 10/10

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