Brasil, 1931, 115 min.
Direção: Mário Peixoto
Roteiro: Mário Peixoto
Elenco: Olga Breno, Taciana Rey, Raul Schnoor, Brutus Pedreira, Carmen Santos, Mário Peixoto, Edgar Brazil, Iolanda Bernardes
"Por seu caráter poético e fragmentado, quase não-narrativo, ainda que pleno de significação, a recepção de Limite deve dar-se em nível de sensibilidade estética e não de compreensão racional."
por Lia Martins
Limite, roteirizado e dirigido por Mário Peixoto entre maio de 1930 e janeiro de 1931, é, de acordo com o cineasta brasileiro Julio Bressane, “o filme mais radical da vanguarda francesa que esta não chegou a fazer”, sendo claramente o primeiro trabalho de avant garde que se realizou no Brasil.
A imagem central da película, a que geraria todas as outras, nos dizeres de Saulo Pereira de Mello, fora uma foto de André Kertézs para a capa da revista Vu - um rosto de mulher de frente, com o olhar fixo e tendo em primeiro plano duas mãos masculinas algemadas. Essa imagem seria reproduzida durante o longa, em inserção não-diegética, gerando uma rima visual forte e expressiva. A capa da revista, avistada por Mario Peixoto em um quiosque do boulevard Montmartre durante sua estadia em Paris, teria reagido com os resíduos vivos de um forte e recente conflito ocorrido entre ele e seu pai, provocando uma torrente de emoções que ele traduziria em seguida no rascunho do que viria a ser o scenario de Limite. Sobre sua reação à foto, cineasta diz: “eu vi foi um mar de fogo, um pedaço de tábua e uma mulher agarrada”, numa clara antecipação da cena final da obra. De uma beleza impressionante, a película, por meio de uma fotogenia típica do impressionismo francês, exprime de forma sublime a fina sensibilidade poética e plástica de seu criador, manifestando qualidades técnicas e expressivas raras ao cinema nacional da época, e exibindo uma excelência formal que deriva diretamente do perfeccionismo extremado de Mário Peixoto. O caráter íntimo e confessional da película - que exibe três pessoas a navegar sem rumo enquanto rememoram seu passado - fica claro em seu fluxo de imagens e emoções, o qual prevalece sobre a narrativa clássica, exprimindo com simplicidade o tema imensamente complexo que perseguiu Mário Peixoto por toda a sua vida: a finitude do homem - o choque entre a consciência de sua mortalidade e a infinitude do universo que o cerca. Por seu caráter poético e fragmentado, quase não-narrativo, ainda que pleno de significação, a recepção de Limite deve dar-se em nível de sensibilidade estética e não de compreensão racional. A obra conta com uma trilha sonora incidental extremamente marcante - em grande medida responsável pelo potencial lírico das cenas e sequências - composta pela seleção musical acurada de Brutus Pedreira, guiada pela estética impressionista - constam obras fundamentais de Debussy e Ravel. Mudanças melódicas ou rítmicas são frequentemente responsáveis pela demarcação do início e do fim das digressões dos personagens, bem como por transmitir seu clima de melancolia ou apreensão ao espectador. Apesar das características avant garde de sua obra, Mário Peixoto buscava inspiração sobretudo em Eisenstein, pelo virtuosismo da montagem, e Chaplin, pelo aspecto poético e habilidade como diretor - características cujo domínio ele demonstra habilmente em Limite. A película traz constantes fusões e sobreposições sutis de imagens, o que contribui enormemente para seu clima fluido e algo onírico. Tendo sua fotografia assinada por Edgar Brazil, observa-se nela uma constante alternância entre shots fixos de enquadramento rígido, com movimentos bruscos de câmera, e grandes tomadas, extremamente móveis e livres, retratando o mar, as paisagens e as ruínas de Mangaratiba, local das filmagens, como parte da história e da composição dos personagens, com importância comparável à dos primeiros e primeiríssimos planos em profusão ao longo da película. Este contraste ressalta a contraposição entre a prisão existencial exibida no semblante dos personagens - e em sua própria situação presente de quase-confinamento - e a vastidão do mar, evocativa de liberdade: mais uma referência ao conflito que norteia a obra. Realizado em meio ao clima de otimismo que imperava entre os realizadores nacionais, levando-os a acreditar que se vivia então o apogeu do cinema no país, Limite parecia ser, de fato, o filme que anunciava a modernidade no cinema brasileiro (como a Semana de Arte Moderna de 1922 havia feito em relação às artes plásticas e à literatura). A euforia imperante entre os cineastas da época, no entanto, baseava-se em duas grandes ilusões: a permanência da crise pela qual passava a indústria cinematográfica norte-americana no fim dos anos 1920 e a possibilidade de convivência das duas formas de cinema - o silencioso e o falado. A história se encarregaria de desiludi-los, e Limite marcaria para sempre o encerramento do ciclo do cinema silencioso brasileiro, anunciando sua derrocada iminente. Mário Peixoto permaneceria, como pontua Saulo Pereira de Mello, um criador solitário, que não deixou sucessores - apenas admiradores declarados. Limite nunca chegou a ser exibido comercialmente; suas exibições foram raras e predominantemente privadas, mas o filme, como lenda, teve e continua tendo vida longa.
Nota: 10/10
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