sábado, 1 de março de 2014

Crítica: "Ela"

Título original: Her
EUA, 2013, 126 min.
Direção: Spike Jonze
Roteiro: Spike Jonze
Elenco: Joaquin Phoenix, Scarlett Johansson, Amy Adams, Chris Pratt, Rooney Mara, Olivia Wilde, Matt Letscher




por Gabriel George Martins

De todas as pessoas que conheço, encontrei uma dezena delas — acho — pela internet. Nada de estranho nisso. Falar pessoalmente pela primeira com alguém já foi tarefa complicadíssima para mim. Mas falar pessoalmente com alguém depois de conhecê-lo pela internet me parecia fácil. Pelo menos duas dessas pessoas se tornoram boas amigas, com as quais mal falo pela internet, atualmente; mas com as quais também mantenho conversas bastante razoáveis em pessoa.

Aliás, deixei de ser mais sociável pela internet; agora, é mais simples conhecer alguém primeiro de forma presencial, para depois adicioná-la ao Facebook, trocar mensagens, etc. Fui na contra-mão dos tempos.

Mas afinal, o que é presencial no mundo de hoje? Ignorando barreiras físicas, podemos estar em dois lugares ao mesmo tempo, fazendo duas tarefas em diferentes espaços. Duas ou mais. A modernidade subverte, todos dias, um pouquinho mais de nossa ideia de indiretividade. Tudo é direto, se houver um bom smartphone, um bom aplicativo de mensagens instantâneas e uma boa conexão wi-fi ou 3G. Nestes dias estranhos, os relacionamentos pessoais tornam-se objeto do tempo e do espaço, na medida em que interferem na compreensão do primeiro, e no uso do segundo. O aparato físico é modificado, repensado, um pouco mais, a todo instante, a cada vírgula,

Ela é um dos mais notáveis esforços de compreensão disso. Partindo de um dos temas mais caros à Sétima Arte — uma história de amor —, o longa de Spike Jonze (Quero Ser John Malkovich, Adaptação) se pretende a estudo dos relacionamentos na era sem fio, mas se transforma também numa discussão sobre a própria evolução humana.

Situado no nada distante ano de 2025, o longa nos apresenta a Theodore Twombly (Phoenix), um homem solitário, de poucos amigos, cuja vida se vê atormentada por um processo de divórcio. Ele nada mais tem o que fazer da vida senão trabalhar, ficar pensando na ex-mulher (Mara) e vagar pela cidade. Numa dessas andanças, acaba descobrindo o miraculoso OS1 da Element Software, um sistema operacional de inteligência artificial que promete facilitar ainda mais a vida da população. Comprado o produto, instalado o sistema, Theodore conhece Samantha (Johansson), a voz do OS, uma criação capaz de ter ideias, sentimentos e convicções próprias. E o que seria apenas uma relação de trabalho se transforma em coleguismo. Amizade. Romance.

Nada em Ela pode ser considerado rigorosamente futurista. Nem pelos contornos da cidade, nem pelo tipo de relação mantido pelos humanos entre si. No primeiro caso, uma mistura das Los Angeles e Shangai atuais providencia o ambiente de ficção científica, de um presente sem toda a sujeira e decadência. Inclusive, as linhas do metrô da cidade são perfeitas, e se interligam com fluidez; abrangem até estações de bairros inventados. Mas, porquanto o futuro de Jonze seja mais utópico que distópico, ainda é futuro, na medida em que trata de lugares, pessoas e tecnologias em um ano que não conhecemos. E ainda é ficção científica, já que, não se realizando em nosso momento histórico, a obra nos reflete ao abordar o ápice da "indiretividade" nas relações humanas.

Extrapolação da modernidade, Ela traz um futuro no qual os relacionamentos mal se dão presencialmente. Na rua, as pessoas não interagem entre si: ou estão sozinhas, como Theodore; ou, se acompanhadas e conversando, muitas vezes trazem seguros seus smartphones nas mãos. Afinal, é preciso estar em dois lugares, em dois tempos, em simultâneo, a consciência dividida. Entretanto, cabe repetir a pergunta de parágrafos acima: o que é presencial no mundo de hoje?

Theodore e Samantha namoram; mas isso seria possível? Ela não tem corpo, mas pode sentir. Sentir o amor de Theo, sua delicadeza — até o sexo, numa acepção abstrata, é sentido. Sexo que não demanda corpo. Sinal da modernidade maior não haveria, num mundo como o nosso, onde namoros virtuais, à distância, são comuns, até corriqueiros; onde o sexo é reinventado todo dia, de diferentes formas; onde se aprende que o amor pode ser livre.

Theodore, como nós, ainda não entende nem aceita muito bem tudo isso, não está pronto, apesar de conhecer a fundo o sentimento humano. Ele é praticamente um especialista em relacionamentos: trabalha redigindo cartas de amor para uma agência de cartões (empresa que, de colorida poderia ser o Google). Sua obra comove, encanta, tem apelo literário. Theo compreende o amor. Mas não consegue vivê-lo corretamente, não consegue estar em um relacionamento. Jonze alegoriza a introspectividade do século XXI, de pessoas que, em decorrência de vidas centradas no trabalho e na tecnologia, desaprendem ou se desacostumam a se relacionar com outras pessoas.

Contudo, não é só Theo que sofre disso. Todos parecem sentir algum tipo de desolação diante do desenvolvimento cada vez mais acelerado das relações e da tecnologia — da fusão de ambos. Como se isso os estivesse obrigando a se reinventarem todos os dias, sendo novos e melhores. A amiga de Theo, Amy (Adams), sente o mesmo com seu namorado, Charles (Letscher), incapaz de ver qualidade em suas produções. Amy também recorre a um OS, e também termina por estabelecer um laço de amizade com a máquina-humana.

Buscando ressaltar essa especial sensação, Jonze se esforça para não chamar atenção aos cenários mais que às suas personagens — embora não funcione muito com os planos aéreos. É impossível não reparar na beleza estéril dessas construções, fazendo uma ode velada ao patamar que o engenho humano alcançou, e o contrastando com a miséria emocional das pessoas.

Também é evocativa a trilha sonora, executada pela prodigiosa banda indie Arcade Fire. (Jonze já havia dirigido para o grupo o videoclipe de The Suburbs, que por sua vez é composto por excertos do curta Scenes from the Suburbs, de sua autoria.) Afogadas em sintetizadores, as canções tramitam entre o doce e o "tecnológico". Os sons mais eletrônicos, em específico, ressaltam a onipresença da tecnologia no espaço — e no tempo. Computadores, smartphones, videogames, elevadores, por aí em todos os lugares. Samantha, como eles, em várias localidades — mas não em espaços físicos. Não como pensamos. As dimensões alteradas do que é físico permitem a ela estar em tudo, como o quereriam os humanos de carne e osso.

Samantha é o auge da simultaneidade das relações. Enquanto conversa com Theodore, pode ler diversos livros, conversas com outros OSs e outras pessoas, acumular mais informação do que nós, humanos, somos capazes. Mas nós, demasiado humanos que somos, também buscamos ultrapassar nossos limites, acumular quantidades imensas de informação em pouquíssimo tempo. A aproximação entre o humano e a máquina é clara e perceptível, e não soa exagerado afirmar que a máquina, no contexto do filme, seja o resultado natural de uma evolução de milhões de anos. Ou antes, ela (Ela) é só mais um passo nesse processo, caminhando ao próximo passo, e depois ao seguinte, em velocidade espantosa.

Pode ser feita uma (pen)última pergunta: o relacionamento entre humanos e OSs (máquinas) não seria um meio de escapar ao real, isto é, fugir da natureza humana? Assim, nossa debandada coletiva para as telas dos tablets e perfis de Facebook e WhatsApp não seria a negação do mundo como é? É possível. Mas o real não é uma convenção social. Ele se modifica com o avanço da percepção, com a disseminação da informação e do conhecimento. O que fez Spike Jonze foi entender o fato, e construir sua fábula moderna em cima dele. Jonze aceitou a modernidade, e reproduziu o amor como ele é por estes dias. Somente acentuou-a, ampliou-a para um futuro-presente.

E desse futuro, aonde iremos?

Quem sabe, a um novo nível de modernidade. Porque ela é tudo o que é, a todo momento. Ela se realiza no tempo e no espaço. Em todas as pessoas. Adjunta a eles, avança, sem fim, obscura em destino. Ela é a modernidade.

Nota: 8/10

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