EUA, 2013, 110 min.
Direção: Alexander Payne
Roteiro: Bob Nelson
Elenco: Bruce Dern, Will Forte, June Squibb, Stacy Keach, Bob Odenkirk, Mary Louise Wilson
por Gabriel George Martins
A vida é uma estrada, e isso é um clichê. Um clichê cheio de buracos, placas alertando ao perigo à frente, paradas em lugares abandonados. Mistérios noturnos, desertos marginais, bifurcações. Nas últimas, escolhe-se um caminho a tomar, toma-se-o, e alguém se arrepende disso; mas não há como retornar. Há pouca gasolina. O carro é velho, motor cansado, cansado como o motorista, que procura desesperadamente a chegada, o destino final, sem qualquer obstáculo, bar funesto, posto abandonado ou cidade fantasma. Quando o clichê se aproxima do fim, já nos escapa o porquê da viagem. Tendemos ao esquecimento, à peregrinação absorta, rumo ao último quilômetro de estrada. Mal podemos esperar por ele.
Mal podemos. No começo de tudo, parece algo impessoal, pragmático, um fazer por fazer. E no final, entendemos a profundidade de tudo. Nos envolvemos subjetivamente com a jornada. Não a vivemos; somos a jornada. Sozinhos ou muitos, procuramos o fim do clichê. E eis que o clichê é findo, com a sensação de que muita coisa ainda nem começou. A essência de alguns bons road movies está no apercebimento dessa ideia, na aproximação entre a vida e uma estrada. Nessa tópica, que de antiga já é clichê, reside uma proposta de reavaliação pessoal, de revisão de um processo, e até do descobrimento de um improvável porvir. É uma viagem também para o público, testemunha dos percalços de uma ou mais personagens. Testemunha e cúmplice. Testemunha, cúmplice e personagem também, refletindo, errando e evoluindo ao fim com elas. Alexander Payne (Os Descendentes, Sideways — Entre Umas e Outras) parte desse clichê para expor seu humor melancólico no delicado Nebraska. A simplicidade ronda a produção, deixando a grandiloquência para ocasiões mais apropriadas. Estudo de personagens humildes e decadentes, talvez este recente longa comunique mais facilmente ao público estadunidense. De qualquer forma, não deixa de ser louvável a atitude de Payne nessa que é uma sucessão de aforismos modestos sobre um tempo irrecuperável, em contraste com um tempo ainda nem advindo. A obra nos conta a odisseia de Woody Grant (Dern), senhor de idade que, após receber um anúncio publicitário pelo correio, pensa ter ganhado 1 milhão de dólares. Forçado pela teimosia e debilidade mental do pai, seu filho, David (Forte), aceita levá-lo até Nebraska para retirar o prêmio. No caminho, passam por uma cidade que fez parte do passado da família, e visitam antigos amigos, inimigos e parentes. (Re)Descobrem, contudo, que esses não há uma divisão clara entre esses três tipos de pessoas, e sopesam as angústias do passado, e toda a história que os trouxe até ali. O enredo de Nebraska nada tem de inovador. O roteiro de Bob Nelson, aliás, preza pela modéstia, alinhando-se ao tom desenvolvido por Payne no decorrer da projeção. Não existe meio de afirmar, contudo, que isso seja algo benéfico. Um road movie, centrado (mas não retido) nas relações entre um pai e um filho, oferecendo algum conteúdo saudosista, regado a diálogos não muito inspirados. Pouco original, até clichê, o filme perde chances de captar o público já por sua trama, jogando na direção um fardo pesado: desenvolver uma história que não cativa. Seria maluquice dizer que Payne não o faz da maneira que pode. E, no fim, o diretor, acaba se saindo muito bem na função. Os acertos se estendem por toda a obra. A começar pela justa escolha do preto-e-branco para fazer seu retrato familiar. Filmando com câmeras digitais, Payne e o diretor de fotografia Phedon Papamichael imprimem um estranho contraste entre o passado (aqui pautado no preto-e-branco) com a modernidade (do formato digital), contraste esse que se justifica no passado perdido em meio ao marulhar dos dias atuais. A cidade de Hawthorne, Nebraska, surge como um relógio estagnado, parada no tempo, preservando costumes e arquitetura de um século que já não pode mais comportá-la. Vemos oficinas, casas, bares, tudo meio esquecido com o passar das décadas — embora nem as oficinas, nem as casas, e muito menos os bares se deem conta disso. Nesses bares, se amontoam velhos. Somente velhos, nada de jovens. Bebendo e cantando em karaokês, isso é tudo o que esses senhores podem recuperar de um tempo não perdido, mas presente numa forma imperfeita, diante deles, entre eles. Ed Pegram (Keach) vê na chegada de Woody e no boato de sua sorte milionária uma chance de se desvencilhar dessa mesmice, de poder se aproveitar da situação para mudar, já na velhice. A grande maioria dos habitantes de Hawthorne o faz, na verdade, recorrendo a um Woody mentalmente problemático, mas ainda mão-aberta. O erro se encontra nos métodos: todos apelam para ajudas passadas e favores antigos — nunca ocorridos, com efeito. O socorro ao passado só lhes escancara a incapacidade de se modificarem, de abandonarem ultrapassados paradigmas, de deixarem de utilizar arcaicos esquemas de enganação. Não por acaso, o comentário feito por Woody sobre o Monte Rushmore segue a mesma linha de raciocínio: "Parece inacabado." As "falhas" do monumento são as mesmas falhas morais desses sujeitos. São ambos oriundos de um tempo mais simples, mas não parecem completos diante da modernidade. Não encontraram um fim. O curioso mesmo é Woody ter dito isso, e não seu filho. Em alguns momentos, David parece ainda mais preso a um tempo que seu pai, e faz odes ao passado — mesmo a um passado recente, com seu apego à ex-namorada. Will Forte, mostrando em sua personagem também cansaço — pela monotonia dos dias, pelos problemas corriqueiros, pela conturbada vida conjugal de seus pais — é a peraonificação da derrota. A ordem natural retorna quando Woody é o derrotado, e explicita suas insanas vontades. O esquisito é que sua lista de desejos inclui apenas coisas novas: um novo compressor de ar, uma nova caminhonete, um novo milhão de dólares. Além do mais, a memória fraquíssima de Woody não o permite ficar tão preso ao passado como os demais. É um mistério para o espectador desvendar seus pensamentos, seus olhares distantes. Nesse sentido, Bruce Dern parece encarnar o melhor do que poderia se chamar de "lacuna". Sua fala brava, seus olhos perdidos, a abundância dos "What?" após as perguntas dão as características não explicitadas de uma protagonista fatigada, limitada a um tempo por alguns, e a outro por si mesma. Confusa por isso, doente por todo o resto, com uma breve noção de que sua estrada já está próxima do fim. Sua esposa, Kate (Squibb), por outro lado, surge não como contraponto, mas como ratificação de muitas das características de Woody. Ela é a força motriz de um relacionamento envelhecido — literal e metaforicamente —; é a aceitação do novo, porquanto nega uma pretensa glória no passado. Não obstante seus embates se deem com o marido, é nos parentes que ela se confrontará com o passado. Vendo-se por eles, ela se vê mudada a ponto de não mais adular aproveitadores. É a admissão da velhice em si. E Squibb, nunca simpática, dona de um mau humor sarcástico, oferece no porte as múltiplas facetas dessa adorável coadjuvante. Com exceção dessas três figuras — Woody, Kate e David —, no entanto, todo o restante (ou a maior parte) das personagens se mostra unidimensional. A identificação entre o comportamento delas e o seu passado é unívoca, mas equivocada. Não sendo movidas por complexos interesses, elas são levadas por motivações únicas, até fatalistas, como se o passado moldasse seus caracteres, e não o oposto. Payne até pode com isso ter pretendido fazer delas um retrato dos EUA, de um pretérito que lhe era grato. Nebraska, como estado localizado ao centro do país, pode ter sido o cenário ideal para esse "ensaio". E para chegar a esse centro, cruzar o país se faz imprescindível, numa viagem feita de Montana a Nebraska em um carro... asiático. David e seu irmão (Odenkirk) têm carros não-americanos. Uma espécie de rompimento com a essência de muitos dos road movies americanos, cujas rotas são percorridas em Fords, Chevrolets, Dodges, etc. Subversão que encontra oposição nas caminhonetes beberronas de Hawthorne, nas estradas desérticas, no Monte Rushmore. Os carros asiáticos apontam para um comentários sobre a mudança na essência do viver norte-americano; são sinal da modernidade que muitos não sabem encarar. Talvez nem David. Mas Woody e Kate podem. À sua maneira. Antes deles, nós — muitos de nós — encaramos essa modernidade com estranhamento. Os jovens a veem com melhores olhos; os velhos, com olhos assustados. Possivelmente porque chega a ser surpreendente que ela venha ao final da estrada. Ela sempre vem. A modernidade nos atinge todos os dias, avançando junto conosco pela estrada, pelo clichê. Mas ela vai em velocidade muito superior. Pois seu carro é mais novo, tem câmbio automático, direção elétrica, menos poluente, e é asiático. A modernidade é asiática, não? Não nos importa, a princípio. Mas depois a olhamos. Contemplamos. E decidimos que o fim chegou. Deixamos o motor morrer, recostamo-nos no banco. Relaxamos. E deixamos que um motorista mais jovem, num automóvel melhor, assuma o clichê. A estrada continua para ele. |
Nota: 9/10
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