Brasil, 2013, 95 min.
Direção: Lufe Steffen
Roteiro: Lufe Steffen
Elenco: Kaká di Polly, Elisa Mascaro, Miss Biá, Celso Curi, James Green, João Silvério Trevisan, Leão Lobo, Gretta Starr, Mário Mendes
"Os anos 70 foram uma década bicha."
(Mário Mendes)
por Gabriel George Martins
Dias atrás, quando voltava de uma casa noturna na rua Augusta, aqui no centro de São Paulo, fiquei olhando para os passantes. Cinco da manhã de um domingo, e havia movimento como jamais tinha visto. Em cada canto, alguém bebendo, alguém comendo, alguém conversando. Multidões se dirigindo ao metrô, a fim voltar para casa — e o metrô, a essa hora, era composto exclusivamente desses seres noturnos, pessoas voltando do rolê. Mas, ainda na rua, subindo 1km até a avenida Paulista, contemplava as nuances da madrugada. Frente a uma modesta barraquinha de cachorro-quente, dois homens e uma mulher papeavam, despreocupados, sentados à porta de uma loja. Do outro lado, mais acima, uma loira jogada ao chão chorava e brigava com um rapaz — e depois se levantou, e caminhou, e o rapaz a acompanhava; havia um terceiro na cena, mas não pude concluir se ele estava com os dois ou não. Vi isso, e mais um pouco, até chegar ao metrô.
Essas pessoas, de onde vêm? Vêm de todo lugar: das zonas oeste e leste, norte e sul; ou moram no centro, em velhos casarões, apartamentos, ou na rua, junto ao lixo metropolitano, à porta de um bar. De onde veio todo esse movimento? Quando foi que teve início? Essas perguntas são menos óbvias, e remontam a um tempo no qual a ocupação do espaço urbano por diversos grupos étnicos e culturais constituia um inusitado projeto de luta por direitos humanos básicos. Mas, num tempo de batalha entre shoppings e comércios de rua, entre os multiplex e os cineminhas modestos; de protestos constantes, em que a mobilidade humana volta a ser pauta no cotidiano das grandes metrópoles, a História se mostra cíclica. Novamente, trava-se um duelo entre valores enferrujados da sociedade e anseios de grupos marginalizados. E o exame de nosso passado pode lançar algumas luzes sobre as atitudes a serem tomadas, em coletivo, para a coletivização metropolitana e a inclusão de grupos. Nessa perspectiva histórica, São Paulo em Hi-Fi constrói um divertido caleidoscópio de casos e causos de gente que colaborou para a quebra (não total, infelizmente) de alguns preconceitos, e permitiu a muitos de nós tomar a iniciativa de usufruir de nosso ambiente cívico, de nossa cidade. Ou lutar por isso. Os grupos em foco aqui têm muito em parecido: homossexuais, transexuais, transformistas. Na noite gay paulistana das décadas de 70 e 80, eles chamaram a atenção das autoridades — em período ditatorial — e da mídia, com seu espalhafato e luxúria. Faziam-se ouvir em meio a um preconceito amplamente difundido, e enfrentaram o auge da AIDS como vítimas, mas também como combatentes. Importantíssimos, portanto, para uma maior inclusão social nos dias atuais. Tendo como referência os depoimentos de testemunhas oculares — e legítimos protagonistas — dos eventos daquela época, o documentário de Lufe Steffen (A Volta da Paulicéia Desvairada) entremeia fotografias e vídeos de arquivo com entrevistas. Entre os ouvidos, a drag queen Kaká di Polly, o jornalista Celso Curi, o historiador James Green, e o mais sublinhado dos nomes, Elisa Mascaro — empresária, dona de importantes clubes gays no período, como a casa noturna Medieval. Mascaro é o ponto de ligação entre todas as outras personagens da cena gay paulistana. Seu talento e popularidade contribuíram para a fundação de mais e mais clubes, em diferentes pontos do centro da cidade. Ela própria, não se limitando à Medieval — que nem foi seu primeiro empreendimento —, contribuiu para a criação de uma espécie de contracultura da noite. O longa não hesita em ressaltá-lo: a cada historieta de um clube, há vários envolvidos, comprometidos também com o passeio por outros lugares; e tudo, em geral, leva inequivocamente a Elisa Mascaro e seu marido, tipos pioneiros no desafio à moral vigente. Mas a gênese desse movimento se encontra muito antes disso, nos barzinhos e galerias, nas reluzentes noites dos anos 60. Contam os entrevistados que era um período de maior aceitação, no qual muitos não faziam tanto caso de poucos. Contudo, as relações homoafetivas ainda se restringiam a esses redutos, pontos de encontro de encontro de onde começaram a brotar as primeiras sementes do que viria a ser a Era de Ouro da noite paulistana, com os clubes de transformistas. Curioso nesse breve período anterior, porém, era como o cinema servia desde já como escapismo para a dureza da realidade. Depoimentos aludem aos casais homossexuais que utilizavam as instalações de populares cinemas de rua (Bristol, Marabá, Marrocos, entre outros), fugindo dos olhos vigilantes e ameaçadores os espreitando do lado de fora. (Mas, claro, havia sempre os guardinhas do cinema em sua cola, a força "policial" desses estabelecimentos.) Partindo disso, o filme de Steffen acaba por assumir uma discreta e singela (e rápida) homenagem ao cinema e suas figuras. Por um lado, nos anos 60, era o cinema um fator escapista (como é escapista, igualmente, este documentário, que procurando nos colocar frente à realidade, nos atira em um passado fantástico e aparentemente distante, como a ficção). Uma das boates — a Village — até contava com uma sala para a exibição de filmes gays. Por outro, nos anos 70 e 80, era o cinema que escapava para a realidade, num jogo de influências e mitificação de estrelas. Não à toa, um retrato de Audrey Hepburn (diva) aparece numa das imagens de arquivo, junto a uma transformista; os astros do cinema deram a tônica estética e performática nas apresentações dos clubes. O cinema, bem como a música, o teatro e a teledramaturgia, serviram aos artistas como ideal profissionalizante. Tornaram-se modelos para as apresentações e indumentária, numa crescente especialização e luxuosidade do meio. Steffen infunde esse conceito no público com depoimentos relembrando as mil e uma extravagâncias dos frequentadores desses locais, que se produziam como nobres para as noites — e até chegavam aos locais montados em elefantes. A influência gradual de grandes estrelas e obras (Os Embalos de Sábado à Noite, Dzi Croquetes, David Bowie, Dancin' Days, entre outros) ainda colaborou no requinte dos espetáculos. Para se ter uma ideia, os entrevistados afirmam que, nos primórdios, as apresentações não se utilizavam de dublagem, algo adotado sem hesitação anos mais tarde. O propósito era, além de ocupar a noite paulistana, ostentar diante dela, para que todos admirassem. Por ocasião da AIDS e da repressão, esse ideal de ocupação e ostentação foi elevado ao máximo, e Steffen faz bem em conduzir todas essas histórias sorrateiramente à origem de uma legítima manifestação em prol dos direitos civis dos homossexuais. Parece-nos improvável, porém natural, que tudo desague na Parada do Orgulho LGBT. Improvável, pois é perfeitamente assumido pelos entrevistados que os movimentos iniciais pela ocupação da noite não tinham finalidade de protesto (embora possuíssem inevitável conotação política), mas natural porque é um fim bastante lógico. São Paulo em Hi-Fi revisita o passado com vistas ao presente e ao futuro. A Parada LGBT paulistana, a despeito de sofrer críticas quanto à perda gradual de sua função, reúne até 4 milhões de pessoas todos os anos. E, num país em que lideranças religiosas com visões anti-homoafetivas crescem e se impõem nos âmbitos político e legal, a Parada ainda significa uma proposta de luta, pelo simples fato de existir. Coloca-se como um chamamento, um convite à observância do comportamento homotransexual, à admiração de sua existência — e ainda o faz de modo espalhafatoso, colorido. É também a negação de um planejamento urbano negligente para com o social, que preza pela inacessibilidade (mesmo sendo a Parada um evento institucionalizado). Os maiores deméritos do filme de Steffen residem não em seus argumentos, mas em sua execução: sua estrutura caleidoscópica, capaz de fornecer ao espectador uma ampla visão dos fatos, soa repetitiva e um tanto monótona. Com tantos lugares, e tantos depoimentos, a irrequieta alternância entre falas, imagens e vídeos, falas, imagens e vídeos, falas, imagens e vídeos, parece cansar fácil em seus quase 100 minutos de duração. Não que seja uma catástrofe; ainda é possível aproveitar o filme — e rir das situações mais insólitas —, passeando pelo centro de São Paulo, mas em um tempo mais remoto. Uma Frei Caneca, uma São João, uma alameda Santos, uma rua Augusta de um passado de 30, 40 anos, e sorrir com o glamour de pessoas que, sem se darem conta disso, fizeram de tudo para nos permitir aproveitar da liberdade, do direito de circular em uma de cidade à noite, em hi-fi. |
Nota: 7/10
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