EUA, 2013, 138 min.
Direção: David O. Russell
Roteiro: Eric Warren Singer, David O. Russell
Elenco: Christian Bale, Amy Adams, Bradley Cooper, Jennifer Lawrence, Jeremy Renner, Louis C.K., Michael Peña
por Gabriel George Martins
A arte falsifica a realidade. Apreende o real, transmuta-o e o molda à sua maneira. A arte é algo mais verossímil que a própria realidade, porque é pensada para enganar o público. A realidade, em oposição, se dá por si só, absurda como é — embora quase sempre pragmática. Pirandello, literato, disse ou escreveu — provavelmente ambos — algo parecido, e suas personagens oscilavam nesse limite impossível entre o mundo real e o imaginário, fictício.
O Cinema também teve seus exímios falsificadores. Gente que aprimorou a técnica, com a fusão perfeita entre personagens e mundo (da ficção). Mundo construído à parte deles, a partir deles. Mas mundo verossímil, e personagens também, como exige a arte. Ainda hoje não se pode contradize-lo: um bom filme depende em grande parte do engenho de seu realizador, de seu cineasta. Depende de como os elementos se unirão a fim de criar mundo e personagens verossímeis. O cineasta precisa ser um bom falsificador do real. David O. Russell é também um falsificador. Da filmografia setentista, de si mesmo. Projeta uma imagem falsa de querido cineasta aos olhos de metade da indústria hollywoodiana, enquanto se concentra em suas trapaças fílmicas, na sabotagem de sua própria pessoa. Não se sabe onde exatamente tem início essa sabotagem: se nos bastidores, com a escalação de um elenco de estrelas para dar charme à produção, ou no minuto inicial de cada uma de suas obras, no primeiro contato com seus mundos improváveis. O. Russell sabota, forja, falsifica. Trapaceia. É. Afinal de contas, é muito adequado que seu novo trabalho, American Hustle, tenha sido batizado por aqui justamente como... Trapaça. O longa, abarrotado de nomes conhecidos e abrilhantados, ficcionaliza a verídica Operação ABSCAM, que, no fim da década de 70, prendeu dezenas de políticos — entre eles o prefeito de Camden, em Nova Jersey — após uma série de filmagens de situações (forjadas) em que os envolvidos apareciam recebendo propina, em troca de outros favores. Inventando xeques árabes e uma empresa de fachada (a Abdul Enterprises, Ltd.) dispostos a investir na Atlantic City do prefeito Angelo Errichetti, o FBI montou a operação com a ajuda do falsário Melvin Weinberg. Inicialmente, o golpe visava à captura de outros falsificadores, mas o esquema evoluiu para uma investigação sobre corrupção política. Isso é História. E isto é a história de Trapaça: o falsário Irving Rosenfeld (Bale) e sua amante Sydney Prosser (Adams), notórios criminosos no ramo, são obrigados a colaborar com o FBI quando o agente Richie DiMaso (Cooper) detém a mulher. A operação da qual devem participar, chamada ABSCAM, procura prender outros falsários, mas logo se desenvolve, devido às ideias de DiMaso, em uma caça à políticos corruptos. Não obstante, o primeiro alvo dessa caçada é o prefeito de Camden, Nova Jersey, Carmine Polito (Renner), um homem que deseja reconstruir Atlantic City, mas sofre com a falta de financiamento. Ao menos O. Russell é honesto em admitir, num letreiro inicial, que apenas "alguns desses fatos realmente ocorreram". Tal sinceridade para com o espectador somente se verifica novamente numa honesta direção de atores. Estes têm relativa liberdade para exercer seu carisma, naquilo que provavelmente é o chamariz e ponto alto da película. Muito embora o diretor-roteirista pareça acreditar que uma atuação tem mais peso quando há um "fucking" em boa parcela das falas. (Ora, e quem se lembra dos "fuck" e suas variações, utilizados em frequência como recurso cômico em seu longa anterior, O Lado Bom da Vida?) E se é melhor pecar pelo excesso que pela falta, O. Russell leva isso a consequências abismais, e exagera com um incompreensível orgulho, fazendo suas personagens rirem (alto) e gritarem (mais alto ainda) como loucos nas sequências que julga mais "libertadoras" ou "decisivas". Não surpreende que a histérica Rosalyn, personagem de Jennifer Lawrence, o faça. Pega-nos de surpresa, contudo, a descarada inutilidade de tal personagem. A esposa de Rosenfeld, ganhando amplo destaque, é quase supérflua, dispensável para o andamento da trama principal (95%, diríamos). A excessão fica um único momento, não muito distante do final, quando (spoiler!) denuncia os planos de seu marido à máfia comandada por Victor Tellegio (Robert De Niro, ilogicamente não creditado num papel de algum relevo). Parece que O. Russell, outra vez trapaceando com o público, procura dar o maior tempo de tela possível a Lawrence — um fugaz beijo lésbico, e uma inacreditável e alienígena sequência com a moça limpando a casa enquanto canta Live and Let Die são alguns dos segmentos que o cineasta considera indispensáveis ao jovem talento. Soará contraditório, então, dizer que Lawrence é das melhores coisas do filme? Certamente não. Não mesmo, quando O. Russell submete o espectador a outras experiências tétricas de tão embaraçosas. Cenas musicais como a de Lawrence, por exemplo, se espalham à exaustão, extensas, no decorrer de toda a projeção (com a subtração da cantoria desenfreada, é claro). Nesses momentos, o longa assume postura videoclíptica, enquanto exibe séries de acontecimentos em velocidade, ao som de clássicos setentistas. O. Russell acredita piamente que as canções o ajudarão a compor o clima de filme dos anos 70 pretendido. Até encaixa o logo anos 70 do estúdio no início da película (uma tendência na indústria ultimamente; Argo e Nebraska são alguns dos filmes que o fazem sem tomar conhecimento do nonsense da decisão). Mas nem a primeira iniciativa, nem o uso do logo antigo da Columbia fazem desta obra de 2013 um longa de 1973. Pelo contrário: é moderno o suficiente para ser inofensivo, correto (no mau sentido) e trivial, como muito daquela época evitaria ser. Inofensivo, sim — seja em sua resposta simples a uma pergunta difícil ("Todos trapaceiam para sobreviver."), dada já no cartaz do filme; seja nas limitações técnicas, na pouca ousadia de O. Russell. Pois, não se contentando em filmar mal, o diretor ainda peca em pontos inacreditáveis. Aqui, a narração em duas vozes (a princípio, um diferencial) se converte num amontoado de explanações artificiais sobre o desenvolvimento da trama — e a segunda voz é simplesmente esquecida após um tempo, o filme terminando apenas com a narração de Bale, em detrimento da de Adams. Ali, a câmera permanece quase irrequieta — e antes fosse com a finalidade acompanhar personagens —; fechando abruptamente nas personagens e movimentando as filmadoras com um frenesi esquizofrênico, O. Russell não dá a dimensão exata das emoções das personagens mais que dá uma sensação de amadorismo. Nada nos garante, entretanto, que O. Russell não seja um amador com sorte, e contatos. Nada evita que ele burle o sistema para forjar suas pérolas falsas. Em especial esta, Trapaça, se sobrepõe às outras por apontar para interessantes caminhos — todos não explorados ou explorados com a sutileza de um rinoceronte. Se se pretende a homenagem fílmica, Trapaça é um engodo. Se se coloca com estudo de personagem, não sabe o que é estudar. Se se apoia em seus intérpretes, é triste anunciar que atores, por si só, não salvam filmes. Mesmo que suas personagens possuam algo de louvável. Não é bem o caso aqui. Muitos subvalorizam suas personagens. O. Russell inova ao supervalorizá-las. As personagens dele e de Warren Singer possuem conexão com a realidade, mas são de fato irreais. Na ficção, também não se encontram, beiram à inverossimilhança. A conclusão não é outra senão a incapacidade russelliana de construir um universo coeso e totalmente coerente, que sabota a sim mesmo por suas ações impraticáveis. O. Russell quer ser um bom falsificador, sendo em si um falso cineasta. Mas não se pode trapacear com o Cinema, porque o Cinema já trapaceia por natureza. Rosenfeld pergunta ao agente DiMaso: "Quem é o mestre? O pintor ou o falsificador?" O pintor, per se, é um falsificador. E o segundo indivíduo a falsificar só executa a farsa da farsa, afinal. A que classe pertence David O. Russell? |
Nota: 4/10
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