sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Crítica: "Limite"

Título original: Limite
Brasil, 1931, 115 min.
Direção: Mário Peixoto
Roteiro: Mário Peixoto
Elenco: Olga Breno, Taciana Rey, Raul Schnoor, Brutus Pedreira, Carmen Santos, Mário Peixoto, Edgar Brazil, Iolanda Bernardes






"Por seu caráter poético e fragmentado, quase não-narrativo, ainda que pleno de significação, a recepção de Limite deve dar-se em nível de sensibilidade estética e não de compreensão racional."


por Lia Martins

Limite, roteirizado e dirigido por Mário Peixoto entre maio de 1930 e janeiro de 1931, é, de acordo com o cineasta brasileiro Julio Bressane, “o filme mais radical da vanguarda francesa que esta não chegou a fazer”, sendo claramente o primeiro trabalho de avant garde que se realizou no Brasil.

A imagem central da película, a que geraria todas as outras, nos dizeres de Saulo Pereira de Mello, fora uma foto de André Kertézs para a capa da revista Vu - um rosto de mulher de frente, com o olhar fixo e tendo em primeiro plano duas mãos masculinas algemadas. Essa imagem seria reproduzida durante o longa, em inserção não-diegética, gerando uma rima visual forte e expressiva.

A capa da revista, avistada por Mario Peixoto em um quiosque do boulevard Montmartre durante sua estadia em Paris, teria reagido com os resíduos vivos de um forte e recente conflito ocorrido entre ele e seu pai, provocando uma torrente de emoções que ele traduziria em seguida no rascunho do que viria a ser o scenario de Limite. Sobre sua reação à foto, cineasta diz: “eu vi foi um mar de fogo, um pedaço de tábua e uma mulher agarrada”, numa clara antecipação da cena final da obra.

De uma beleza impressionante, a película, por meio de uma fotogenia típica do impressionismo francês, exprime de forma sublime a fina sensibilidade poética e plástica de seu criador, manifestando qualidades técnicas e expressivas raras ao cinema nacional da época, e exibindo uma excelência formal que deriva diretamente do perfeccionismo extremado de Mário Peixoto.

O caráter íntimo e confessional da película - que exibe três pessoas a navegar sem rumo enquanto rememoram seu passado - fica claro em seu fluxo de imagens e emoções, o qual prevalece sobre a narrativa clássica, exprimindo com simplicidade o tema imensamente complexo que perseguiu Mário Peixoto por toda a sua vida: a finitude do homem - o choque entre a consciência de sua mortalidade e a infinitude do universo que o cerca.

Por seu caráter poético e fragmentado, quase não-narrativo, ainda que pleno de significação, a recepção de Limite deve dar-se em nível de sensibilidade estética e não de compreensão racional.

A obra conta com uma trilha sonora incidental extremamente marcante - em grande medida responsável pelo potencial lírico das cenas e sequências - composta pela seleção musical acurada de Brutus Pedreira, guiada pela estética impressionista - constam obras fundamentais de Debussy e Ravel. Mudanças melódicas ou rítmicas são frequentemente responsáveis pela demarcação do início e do fim das digressões dos personagens, bem como por transmitir seu clima de melancolia ou apreensão ao espectador.

Apesar das características avant garde de sua obra, Mário Peixoto buscava inspiração sobretudo em Eisenstein, pelo virtuosismo da montagem, e Chaplin, pelo aspecto poético e habilidade como diretor - características cujo domínio ele demonstra habilmente em Limite. A película traz constantes fusões e sobreposições sutis de imagens, o que contribui enormemente para seu clima fluido e algo onírico.

Tendo sua fotografia assinada por Edgar Brazil, observa-se nela uma constante alternância entre shots fixos de enquadramento rígido, com movimentos bruscos de câmera, e grandes tomadas, extremamente móveis e livres, retratando o mar, as paisagens e as ruínas de Mangaratiba, local das filmagens, como parte da história e da composição dos personagens, com importância comparável à dos primeiros e primeiríssimos planos em profusão ao longo da película. Este contraste ressalta a contraposição entre a prisão existencial exibida no semblante dos personagens - e em sua própria situação presente de quase-confinamento - e a vastidão do mar, evocativa de liberdade: mais uma referência ao conflito que norteia a obra.

Realizado em meio ao clima de otimismo que imperava entre os realizadores nacionais, levando-os a acreditar que se vivia então o apogeu do cinema no país, Limite parecia ser, de fato, o filme que anunciava a modernidade no cinema brasileiro (como a Semana de Arte Moderna de 1922 havia feito em relação às artes plásticas e à literatura).

A euforia imperante entre os cineastas da época, no entanto, baseava-se em duas grandes ilusões: a permanência da crise pela qual passava a indústria cinematográfica norte-americana no fim dos anos 1920 e a possibilidade de convivência das duas formas de cinema - o silencioso e o falado. A história se encarregaria de desiludi-los, e Limite marcaria para sempre o encerramento do ciclo do cinema silencioso brasileiro, anunciando sua derrocada iminente.

Mário Peixoto permaneceria, como pontua Saulo Pereira de Mello, um criador solitário, que não deixou sucessores - apenas admiradores declarados. Limite nunca chegou a ser exibido comercialmente; suas exibições foram raras e predominantemente privadas, mas o filme, como lenda, teve e continua tendo vida longa.


Nota: 10/10

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Crítica: "Nebraska"

Título original: Nebraska
EUA, 2013, 110 min.
Direção: Alexander Payne
Roteiro: Bob Nelson
Elenco: Bruce Dern, Will Forte, June Squibb, Stacy Keach, Bob Odenkirk, Mary Louise Wilson





por Gabriel George Martins

A vida é uma estrada, e isso é um clichê. Um clichê cheio de buracos, placas alertando ao perigo à frente, paradas em lugares abandonados. Mistérios noturnos, desertos marginais, bifurcações. Nas últimas, escolhe-se um caminho a tomar, toma-se-o, e alguém se arrepende disso; mas não há como retornar. Há pouca gasolina. O carro é velho, motor cansado, cansado como o motorista, que procura desesperadamente a chegada, o destino final, sem qualquer obstáculo, bar funesto, posto abandonado ou cidade fantasma. Quando o clichê se aproxima do fim, já nos escapa o porquê da viagem. Tendemos ao esquecimento, à peregrinação absorta, rumo ao último quilômetro de estrada. Mal podemos esperar por ele.

Mal podemos.

No começo de tudo, parece algo impessoal, pragmático, um fazer por fazer. E no final, entendemos a profundidade de tudo. Nos envolvemos subjetivamente com a jornada. Não a vivemos; somos a jornada. Sozinhos ou muitos, procuramos o fim do clichê. E eis que o clichê é findo, com a sensação de que muita coisa ainda nem começou.

A essência de alguns bons road movies está no apercebimento dessa ideia, na aproximação entre a vida e uma estrada. Nessa tópica, que de antiga já é clichê, reside uma proposta de reavaliação pessoal, de revisão de um processo, e até do descobrimento de um improvável porvir. É uma viagem também para o público, testemunha dos percalços de uma ou mais personagens. Testemunha e cúmplice. Testemunha, cúmplice e personagem também, refletindo, errando e evoluindo ao fim com elas.

Alexander Payne (Os Descendentes, Sideways — Entre Umas e Outras) parte desse clichê para expor seu humor melancólico no delicado Nebraska. A simplicidade ronda a produção, deixando a grandiloquência para ocasiões mais apropriadas. Estudo de personagens humildes e decadentes, talvez este recente longa comunique mais facilmente ao público estadunidense. De qualquer forma, não deixa de ser louvável a atitude de Payne nessa que é uma sucessão de aforismos modestos sobre um tempo irrecuperável, em contraste com um tempo ainda nem advindo.

A obra nos conta a odisseia de Woody Grant (Dern), senhor de idade que, após receber um anúncio publicitário pelo correio, pensa ter ganhado 1 milhão de dólares. Forçado pela teimosia e debilidade mental do pai, seu filho, David (Forte), aceita levá-lo até Nebraska para retirar o prêmio. No caminho, passam por uma cidade que fez parte do passado da família, e visitam antigos amigos, inimigos e parentes. (Re)Descobrem, contudo, que esses não há uma divisão clara entre esses três tipos de pessoas, e sopesam as angústias do passado, e toda a história que os trouxe até ali.

O enredo de Nebraska nada tem de inovador. O roteiro de Bob Nelson, aliás, preza pela modéstia, alinhando-se ao tom desenvolvido por Payne no decorrer da projeção. Não existe meio de afirmar, contudo, que isso seja algo benéfico. Um road movie, centrado (mas não retido) nas relações entre um pai e um filho, oferecendo algum conteúdo saudosista, regado a diálogos não muito inspirados. Pouco original, até clichê, o filme perde chances de captar o público já por sua trama, jogando na direção um fardo pesado: desenvolver uma história que não cativa.

Seria maluquice dizer que Payne não o faz da maneira que pode. E, no fim, o diretor, acaba se saindo muito bem na função.

Os acertos se estendem por toda a obra. A começar pela justa escolha do preto-e-branco para fazer seu retrato familiar. Filmando com câmeras digitais, Payne e o diretor de fotografia Phedon Papamichael imprimem um estranho contraste entre o passado (aqui pautado no preto-e-branco) com a modernidade (do formato digital), contraste esse que se justifica no passado perdido em meio ao marulhar dos dias atuais. A cidade de Hawthorne, Nebraska, surge como um relógio estagnado, parada no tempo, preservando costumes e arquitetura de um século que já não pode mais comportá-la. Vemos oficinas, casas, bares, tudo meio esquecido com o passar das décadas — embora nem as oficinas, nem as casas, e muito menos os bares se deem conta disso.

Nesses bares, se amontoam velhos. Somente velhos, nada de jovens. Bebendo e cantando em karaokês, isso é tudo o que esses senhores podem recuperar de um tempo não perdido, mas presente numa forma imperfeita, diante deles, entre eles. Ed Pegram (Keach) vê na chegada de Woody e no boato de sua sorte milionária uma chance de se desvencilhar dessa mesmice, de poder se aproveitar da situação para mudar, já na velhice. A grande maioria dos habitantes de Hawthorne o faz, na verdade, recorrendo a um Woody mentalmente problemático, mas ainda mão-aberta. O erro se encontra nos métodos: todos apelam para ajudas passadas e favores antigos — nunca ocorridos, com efeito. O socorro ao passado só lhes escancara a incapacidade de se modificarem, de abandonarem ultrapassados paradigmas, de deixarem de utilizar arcaicos esquemas de enganação.

Não por acaso, o comentário feito por Woody sobre o Monte Rushmore segue a mesma linha de raciocínio: "Parece inacabado." As "falhas" do monumento são as mesmas falhas morais desses sujeitos. São ambos oriundos de um tempo mais simples, mas não parecem completos diante da modernidade. Não encontraram um fim.

O curioso mesmo é Woody ter dito isso, e não seu filho. Em alguns momentos, David parece ainda mais preso a um tempo que seu pai, e faz odes ao passado — mesmo a um passado recente, com seu apego à ex-namorada. Will Forte, mostrando em sua personagem também cansaço — pela monotonia dos dias, pelos problemas corriqueiros, pela conturbada vida conjugal de seus pais — é a peraonificação da derrota. A ordem natural retorna quando Woody é o derrotado, e explicita suas insanas vontades. O esquisito é que sua lista de desejos inclui apenas coisas novas: um novo compressor de ar, uma nova caminhonete, um novo milhão de dólares.

Além do mais, a memória fraquíssima de Woody não o permite ficar tão preso ao passado como os demais. É um mistério para o espectador desvendar seus pensamentos, seus olhares distantes. Nesse sentido, Bruce Dern parece encarnar o melhor do que poderia se chamar de "lacuna". Sua fala brava, seus olhos perdidos, a abundância dos "What?" após as perguntas dão as características não explicitadas de uma protagonista fatigada, limitada a um tempo por alguns, e a outro por si mesma. Confusa por isso, doente por todo o resto, com uma breve noção de que sua estrada já está próxima do fim.

Sua esposa, Kate (Squibb), por outro lado, surge não como contraponto, mas como ratificação de muitas das características de Woody. Ela é a força motriz de um relacionamento envelhecido — literal e metaforicamente —; é a aceitação do novo, porquanto nega uma pretensa glória no passado. Não obstante seus embates se deem com o marido, é nos parentes que ela se confrontará com o passado. Vendo-se por eles, ela se vê mudada a ponto de não mais adular aproveitadores. É a admissão da velhice em si. E Squibb, nunca simpática, dona de um mau humor sarcástico, oferece no porte as múltiplas facetas dessa adorável coadjuvante.

Com exceção dessas três figuras — Woody, Kate e David —, no entanto, todo o restante (ou a maior parte) das personagens se mostra unidimensional. A identificação entre o comportamento delas e o seu passado é unívoca, mas equivocada. Não sendo movidas por complexos interesses, elas são levadas por motivações únicas, até fatalistas, como se o passado moldasse seus caracteres, e não o oposto. Payne até pode com isso ter pretendido fazer delas um retrato dos EUA, de um pretérito que lhe era grato. Nebraska, como estado localizado ao centro do país, pode ter sido o cenário ideal para esse "ensaio".

E para chegar a esse centro, cruzar o país se faz imprescindível, numa viagem feita de Montana a Nebraska em um carro... asiático. David e seu irmão (Odenkirk) têm carros não-americanos. Uma espécie de rompimento com a essência de muitos dos road movies americanos, cujas rotas são percorridas em Fords, Chevrolets, Dodges, etc. Subversão que encontra oposição nas caminhonetes beberronas de Hawthorne, nas estradas desérticas, no Monte Rushmore. Os carros asiáticos apontam para um comentários sobre a mudança na essência do viver norte-americano; são sinal da modernidade que muitos não sabem encarar. Talvez nem David.

Mas Woody e Kate podem. À sua maneira.

Antes deles, nós — muitos de nós — encaramos essa modernidade com estranhamento. Os jovens a veem com melhores olhos; os velhos, com olhos assustados. Possivelmente porque chega a ser surpreendente que ela venha ao final da estrada. Ela sempre vem. A modernidade nos atinge todos os dias, avançando junto conosco pela estrada, pelo clichê. Mas ela vai em velocidade muito superior. Pois seu carro é mais novo, tem câmbio automático, direção elétrica, menos poluente, e é asiático. A modernidade é asiática, não?

Não nos importa, a princípio. Mas depois a olhamos. Contemplamos. E decidimos que o fim chegou. Deixamos o motor morrer, recostamo-nos no banco. Relaxamos. E deixamos que um motorista mais jovem, num automóvel melhor, assuma o clichê. A estrada continua para ele.

Nota: 9/10

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Crítica: "Trapaça"

Título original: American Hustle
EUA, 2013, 138 min.
Direção: David O. Russell
Roteiro: Eric Warren Singer, David O. Russell
Elenco: Christian Bale, Amy Adams, Bradley Cooper, Jennifer Lawrence, Jeremy Renner, Louis C.K., Michael Peña




por Gabriel George Martins

A arte falsifica a realidade. Apreende o real, transmuta-o e o molda à sua maneira. A arte é algo mais verossímil que a própria realidade, porque é pensada para enganar o público. A realidade, em oposição, se dá por si só, absurda como é — embora quase sempre pragmática. Pirandello, literato, disse ou escreveu — provavelmente ambos — algo parecido, e suas personagens oscilavam nesse limite impossível entre o mundo real e o imaginário, fictício.

O Cinema também teve seus exímios falsificadores. Gente que aprimorou a técnica, com a fusão perfeita entre personagens e mundo (da ficção). Mundo construído à parte deles, a partir deles. Mas mundo verossímil, e personagens também, como exige a arte. Ainda hoje não se pode contradize-lo: um bom filme depende em grande parte do engenho de seu realizador, de seu cineasta. Depende de como os elementos se unirão a fim de criar mundo e personagens verossímeis. O cineasta precisa ser um bom falsificador do real.

David O. Russell é também um falsificador. Da filmografia setentista, de si mesmo. Projeta uma imagem falsa de querido cineasta aos olhos de metade da indústria hollywoodiana, enquanto se concentra em suas trapaças fílmicas, na sabotagem de sua própria pessoa. Não se sabe onde exatamente tem início essa sabotagem: se nos bastidores, com a escalação de um elenco de estrelas para dar charme à produção, ou no minuto inicial de cada uma de suas obras, no primeiro contato com seus mundos improváveis. O. Russell sabota, forja, falsifica. Trapaceia. É. Afinal de contas, é muito adequado que seu novo trabalho, American Hustle, tenha sido batizado por aqui justamente como... Trapaça.

O longa, abarrotado de nomes conhecidos e abrilhantados, ficcionaliza a verídica Operação ABSCAM, que, no fim da década de 70, prendeu dezenas de políticos — entre eles o prefeito de Camden, em Nova Jersey — após uma série de filmagens de situações (forjadas) em que os envolvidos apareciam recebendo propina, em troca de outros favores. Inventando xeques árabes e uma empresa de fachada (a Abdul Enterprises, Ltd.) dispostos a investir na Atlantic City do prefeito Angelo Errichetti, o FBI montou a operação com a ajuda do falsário Melvin Weinberg. Inicialmente, o golpe visava à captura de outros falsificadores, mas o esquema evoluiu para uma investigação sobre corrupção política.

Isso é História. E isto é a história de Trapaça: o falsário Irving Rosenfeld (Bale) e sua amante Sydney Prosser (Adams), notórios criminosos no ramo, são obrigados a colaborar com o FBI quando o agente Richie DiMaso (Cooper) detém a mulher. A operação da qual devem participar, chamada ABSCAM, procura prender outros falsários, mas logo se desenvolve, devido às ideias de DiMaso, em uma caça à políticos corruptos. Não obstante, o primeiro alvo dessa caçada é o prefeito de Camden, Nova Jersey, Carmine Polito (Renner), um homem que deseja reconstruir Atlantic City, mas sofre com a falta de financiamento.

Ao menos O. Russell é honesto em admitir, num letreiro inicial, que apenas "alguns desses fatos realmente ocorreram". Tal sinceridade para com o espectador somente se verifica novamente numa honesta direção de atores. Estes têm relativa liberdade para exercer seu carisma, naquilo que provavelmente é o chamariz e ponto alto da película. Muito embora o diretor-roteirista pareça acreditar que uma atuação tem mais peso quando há um "fucking" em boa parcela das falas. (Ora, e quem se lembra dos "fuck" e suas variações, utilizados em frequência como recurso cômico em seu longa anterior, O Lado Bom da Vida?) E se é melhor pecar pelo excesso que pela falta, O. Russell leva isso a consequências abismais, e exagera com um incompreensível orgulho, fazendo suas personagens rirem (alto) e gritarem (mais alto ainda) como loucos nas sequências que julga mais "libertadoras" ou "decisivas".

Não surpreende que a histérica Rosalyn, personagem de Jennifer Lawrence, o faça. Pega-nos de surpresa, contudo, a descarada inutilidade de tal personagem. A esposa de Rosenfeld, ganhando amplo destaque, é quase supérflua, dispensável para o andamento da trama principal (95%, diríamos). A excessão fica um único momento, não muito distante do final, quando (spoiler!) denuncia os planos de seu marido à máfia comandada por Victor Tellegio (Robert De Niro, ilogicamente não creditado num papel de algum relevo). Parece que O. Russell, outra vez trapaceando com o público, procura dar o maior tempo de tela possível a Lawrence — um fugaz beijo lésbico, e uma inacreditável e alienígena sequência com a moça limpando a casa enquanto canta Live and Let Die são alguns dos segmentos que o cineasta considera indispensáveis ao jovem talento.

Soará contraditório, então, dizer que Lawrence é das melhores coisas do filme? Certamente não. Não mesmo, quando O. Russell submete o espectador a outras experiências tétricas de tão embaraçosas. Cenas musicais como a de Lawrence, por exemplo, se espalham à exaustão, extensas, no decorrer de toda a projeção (com a subtração da cantoria desenfreada, é claro). Nesses momentos, o longa assume postura videoclíptica, enquanto exibe séries de acontecimentos em velocidade, ao som de clássicos setentistas. O. Russell acredita piamente que as canções o ajudarão a compor o clima de filme dos anos 70 pretendido. Até encaixa o logo anos 70 do estúdio no início da película (uma tendência na indústria ultimamente; Argo e Nebraska são alguns dos filmes que o fazem sem tomar conhecimento do nonsense da decisão). Mas nem a primeira iniciativa, nem o uso do logo antigo da Columbia fazem desta obra de 2013 um longa de 1973. Pelo contrário: é moderno o suficiente para ser inofensivo, correto (no mau sentido) e trivial, como muito daquela época evitaria ser.

Inofensivo, sim — seja em sua resposta simples a uma pergunta difícil ("Todos trapaceiam para sobreviver."), dada já no cartaz do filme; seja nas limitações técnicas, na pouca ousadia de O. Russell. Pois, não se contentando em filmar mal, o diretor ainda peca em pontos inacreditáveis. Aqui, a narração em duas vozes (a princípio, um diferencial) se converte num amontoado de explanações artificiais sobre o desenvolvimento da trama — e a segunda voz é simplesmente esquecida após um tempo, o filme terminando apenas com a narração de Bale, em detrimento da de Adams. Ali, a câmera permanece quase irrequieta — e antes fosse com a finalidade acompanhar personagens —; fechando abruptamente nas personagens e movimentando as filmadoras com um frenesi esquizofrênico, O. Russell não dá a dimensão exata das emoções das personagens mais que dá uma sensação de amadorismo.

Nada nos garante, entretanto, que O. Russell não seja um amador com sorte, e contatos. Nada evita que ele burle o sistema para forjar suas pérolas falsas. Em especial esta, Trapaça, se sobrepõe às outras por apontar para interessantes caminhos — todos não explorados ou explorados com a sutileza de um rinoceronte. Se se pretende a homenagem fílmica, Trapaça é um engodo. Se se coloca com estudo de personagem, não sabe o que é estudar. Se se apoia em seus intérpretes, é triste anunciar que atores, por si só, não salvam filmes. Mesmo que suas personagens possuam algo de louvável. Não é bem o caso aqui.

Muitos subvalorizam suas personagens. O. Russell inova ao supervalorizá-las. As personagens dele e de Warren Singer possuem conexão com a realidade, mas são de fato irreais. Na ficção, também não se encontram, beiram à inverossimilhança. A conclusão não é outra senão a incapacidade russelliana de construir um universo coeso e totalmente coerente, que sabota a sim mesmo por suas ações impraticáveis. O. Russell quer ser um bom falsificador, sendo em si um falso cineasta. Mas não se pode trapacear com o Cinema, porque o Cinema já trapaceia por natureza.

Rosenfeld pergunta ao agente DiMaso: "Quem é o mestre? O pintor ou o falsificador?" O pintor, per se, é um falsificador. E o segundo indivíduo a falsificar só executa a farsa da farsa, afinal.

A que classe pertence David O. Russell?

Nota: 4/10

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Crítica: "Capitão Phillips"

Título original: Captain Phillips
EUA, 2013, 134 min.
Direção: Paul Greengrass
Roteiro: Billy Ray (baseado na biografia Dever de Capitão, de Richard Phillips e Stephan Talty)
Elenco: Tom Hanks, Barkhad Abdi, Barkhad Abdirahman, Faysal Ahmed, Mahat M. Ali, Michael Chernus, Catherine Keener, David Warshofsky, Corey Johnson, Chris Mulkey



"Independente da questão de veracidade na maioria dos fatos, funciona como um verdadeiro exemplo de execução, que consegue a proeza de manter o espectador sempre envolvido com os personagens relatados."


por Leo Bastos

Há pouco tempo, estava lendo uma declaração dos tripulantes do capitão Richard Phillips. Em nota eles reclamavam da imagem heroica que o filme passava do personagem central, alegando que na verdade ele era uma figura bem difícil de lidar, sempre mal humorado e egoísta. Bom, não estou aqui para discutir a veracidade dos fatos. Cinema é cinema. Vida real é vida real. Existem liberdades para se adaptar. O que importa é o quanto elas funcionam como longa-metragem. Então não esperem nessa crítica que eu perca tempo comparando as situações, apenas vou discutir enquanto obra cinematográfica. E aqui, o diretor Paul Greengrass (que já havia demostrado sua competência no gênero em filmes como Vôo United 93 e Domingo Sangrento) mais uma vez chama atenção, auxiliado por sua ótima escolha de elenco, transformam esse projeto em uma experiência bastante sucessiva.

O roteiro foi escrito com base no livro A Captain's Duty, do próprio Phillips. Os acontecimentos se passam durante 2009, onde o capitão (Hanks) durante uma passagem pela costa da Somália - região conhecida por forte presença de pirataria - tem seu cargueiro, o Maersk Alabama, sequestrado por piratas somalis, que são liderados por Muse (Abdi). A partir daí, começa a luta de Phillips por sua sobrevivência e dos seus tripulantes.

Nos primeiros minutos de projeção, Greengrass usa para estabelecer os dois mundos que cercaram toda a narrativa. Dedicando-se a expor de forma simples, mas precisa, o cotidiano de Phillips. Em poucos instantes vemos um rápido diálogo de despedida com a esposa (Keener), que já serve pra demonstrar o carinho e cumplicidade de ambos, além de sua postura dedicada de pai de família. Depois acompanhamos seu desempenho como capitão, ao qual mostra uma entrega tão comprometida quanto. Pronto, já está formado o exemplo de pessoa. Com isso, facilmente já teremos a identificação do público, que contribuirá muito para o sucesso da tensão que trará, já que haverá um apego pelo personagem. Em seguida, também se propõe a exibir um pouco da vida dos piratas somalis. Infelizmente não dá tanto espaço quanto o núcleo de Phillips, o que poderia ser bem mais explorado, por se tratar de uma questão bem mais complexa do que parece. Mas fica a intenção, já que ao menos confere sequências que esboçam toda miséria e falta de oportunidades em que vivem essas pessoas, vítimas do capitalismo. Conferindo uma fotografia regada a cores frias que registram todo o caos e ausência de esperança que orbitam nesse lugar. E mesmo sem ir mais a fundo na questão Somália, fica claro que Greengrass não busca julgar as ações dos somalis, que o público mais egoísta pode facilmente os encarar como “os vilões” da parada, mas sim jogar uma grande discussão em tela, com dois sujeitos de personalidade forte, que lutam para defender seus espaços.

Orquestrando uma execução que confere um clima tenso, que sempre mantém o espectador tão aflito, e preso quanto aos personagens. Pra ter uma ideia dos recursos usados pelo diretor, ao inicio o Maersk Alabama é exibido com um navio altamente espaçoso, em planos abertos e expansivos. Quando ocorre a invasão, eles se fecham, e os espaços mais compactos do lugar são explorados, dando uma sensação cada vez mais claustrofóbica. Clima esse que vai aumentando ao passar do tempo, quando a situação vai ficando ainda mais desesperadora e sem saída. Alternando algumas vezes com o velho truque da câmera tremida, mas vale por ser bem empregada, sempre nas cenas certas, que ainda é preenchida em alguns momentos por um silêncio angustiante ou pela eficiente trilha sonora composta por Henry Jackman, tensa em parte do filme, e emocionante, quando é necessário.

Mas todo o brilhantismo do filme não seria suficiente caso não contasse com a dupla de protagonista e antagonista tão bem definidos. Interpretados fabulosamente por Tom Hanks e pelo estreante Barkhad Abdi, ambos apesar de viverem em contextos diferentes, são guiados pelas mesmas finalidades, proteger suas tripulações.

Hanks, ótimo - maravilhoso, fantástico, desculpem, mas é que sou muito fã desse cara, não resisti - como sempre, confere um olhar exaustivo, mas sempre esperançoso a Phillips. Suas expressões revelam toda a tristeza presente naquele momento, sem precisar de lágrimas, embora que um dos momentos finais, o personagem explode todas as suas emoções em uma espécie de “limpeza de alma” diante o fim daquele pesadelo, que parece não ter acabado de fato. E apesar de ser vítima daqueles piratas, ainda consegue se importar com o destino deles, chegando a imaginar que poderia ser seu filho no lugar de algum deles. Mais uma vez voltando àquela imagem poética do herói, que novamente repito, não vai comparar com a realidade.

Abdi também é sucessivo na construção de seu Muse, um homem carregado pelas dificuldades presentes na sua condição de vida, que apesar de toda a fúria presente nos momentos em que demonstra sua autoridade perante seus companheiros, ainda consegue passar certo carisma, com sua fala mansa na maioria das vezes. Sempre tentando lidar com Phillips da forma mais passiva, embora enfrente a ira de Barkhad Abdirahman (Bilal), que carrega uma amargura ainda mais desenfreada do sistema.

Aliás, esse sentimento de inferioridade aos “privilegiados”, como eles mesmo tentam se referir, predomina entre os somalis, deixando a experiência ainda mais interessante. Principalmente se refletido durantes os minutos iniciais que do ponto de vista que os americanos estão mais preocupados com o prejuízo das cargas, ou na simples volta ao conforto do estabelecido lar, como o Phillips, onde retornaram venerados por uma sociedade que de cara os abraçaram e condenaram os somalis sem a mínima reflexão de sua dura e triste realidade, a única que os aguarda na volta, da qual provavelmente nunca saíram. Refletindo também a equipe de resgate americana, que seu único interesse é trazer o capitão de volta, sã e salvo e sem nenhum arranhãozinho, sem hesitar em executar “os sequestradores”, se for preciso.

(ALERTA DE SPOILER) Assim ao final quando Phillips é resgatado, depois do trágico destino daqueles piratas, a emocionante e comentada cena do choro de desabafo do personagem, encarnada com a enorme sensibilidade de Hanks, mostra que apesar de ser um consolo para o público de ver aquele honrado homem livre daquelas situações (ou para a maioria o “mocinho” salvo dos “bandidos”) isso está completamente longe de ser um final feliz.

Nota: 9/10

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Crítica: "Gravidade"

Título original: Gravity
EUA/Reino Unido/México, 2013, 91 min.
Direção: Alfonso Cuarón
Roteiro: Alfonso Cuarón, Jonás Cuarón
Elenco: Sandra Bullock, George Clooney






"Ambição, desenvolvimento e recompensa das melhores usando o melhor que o cinema pode nos proporcionar."

por Bruno Albuquerque 

Ambição. Eis algo que está em falta no cinema – e, principalmente, no hollywoodiano. Ambição é necessária para longas fantásticos, emocionantes e inesquecíveis – porém, deve ser calculada com esmero, pois qualquer mínimo exagero pode prejudicar o produto final. Entretanto, estamos em 2013. Já vimos A Viagem (o longa mais ambicioso – e vitorioso em seu objetivo – do ano até o momento), Star Trek (repetindo sua essência ao apresentar um blockbuster com um “plus” filosófico para o público mais atento e dedicado) e Only God Forgives (mais uma obra-prima de Nicholas Windingn-Refn, diretor de Drive, cheia de metáforas brutais e um exercício de estilo fabuloso). E todos esses lançados na primeira metade do ano. Então, o que ainda nos restava?

Havia a promessa de Gravidade, primeiro filme, após um hiato de anos, de Alfonso Cuarón, diretor do excelente Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban e do excepcional Filhos da Esperança, aonde fixou sua principal característica: planos-sequência intermináveis e com ângulos e movimentos de câmera dos mais improváveis. Seu novo filme, estrelado por Sandra Bullock e George Clooney, prometeu. Muito. James Cameron o elegeu como “o melhor filme no espaço de todos os tempos”. Todos os que o assistiram em festivais o classificavam como “excelente” ou “obra-prima”. Agora, após o lançamento do longa nos cinemas comerciais, vem a pergunta: ele cumpriu? Ele realmente é tudo isso o que diziam ser?

Ele é, sim, tudo o que diziam. E muito, mas muito mais.

Acima de tudo, Cuarón é inteligente. Ele jamais faria um filme por impulso, mudando alguns aspectos durante a gravação ou retocando determinados pontos na pós-produção. Não. Ele o planejou milimetricamente, antes mesmo de desenvolver o roteiro. Percebe-se, por todo o cuidado do longa-metragem em sua precisão ao gerar suspense e, muitas vezes, o pânico, que Cuarón planejou tudo quando tinha apenas a ideia básica do enredo do filme. Digo isso justamente porque, durante os 90 minutos do longa, vemos todas as possibilidades que Cuarón poderia ter imaginado para desenvolver o enredo de seu filme sendo postos em prática: temos a Dra. Ryan perdendo todo o oxigênio de sua reserva; temos a mesma sendo lançada espaço adentro, sem chance alguma de ser resgatada; vemos destroços de satélites passando de raspão perto de si; uma de suas naves sendo incendiada de dentro para fora; o escuro total do espaço sideral encobrindo a protagonista completamente, deixando apenas as luzes de seu capacete visíveis em meio à escuridão; dentre outros. Gravidade vê a inquietação do público como objetivo, e usa de todos os artifícios possíveis para alcançá-lo.

Tendo noção total de que poderia mover sua câmera da maneira que quisesse (já que, no espaço, não há nenhum eixo que obriga a câmera a ficar fixa, por conta da falta de gravidade), Cuarón usa e abusa dos planos-sequência – que se mostram, aqui, de vital importância para a ascensão do suspense. Desde o plano inicial, que dura 8 minutos, passando pela troca, sem cortes, do ponto de vista objetivo ao subjetivo (visão do público, visão do personagem, respectivamente) em uma única cena, e chegando em um interminável, porém genial, take da protagonista relaxando após uma situação tensa. O diferencial: ela está em posição fetal, e um cabo solto da nave ao seu lado, pendendo sob sua barriga, simboliza o cordão umbilical. Brilhante. (Você pode ter uma noção da cena aqui.)

Outro ponto positivo do longa é o seu roteiro: simples, porém profundo. Você sofre junto com os personagens por conhecer suas personalidades, seu problema naquele momento e seus dramas no passado (o acontecido nos anos anteriores da protagonista é o que move suas atitudes, o que a inspira, e isso fica claro durante todo o desastre espacial que é narrado no filme). Ou seja: não só preciso na qualidade técnica de seu filme (a trilha sonora também é fantástica, sendo utilizada como gerador de efeitos sonoros, que não existem no espaço, e fez este que vos fala se emocionar em diversos momentos), mas Gravidade também se preocupa com a forma em que sua trama é explorada. Sensacional.

Surpreendendo o tempo inteiro, tirando o fôlego do público (literalmente. O cinema inteiro suspirava ao mesmo tempo durante minha sessão) e com um final magistral, incrivelmente empolgante e inesquecível, Gravidade é, sim, um dos melhores filmes do ano – e, ouso dizer, da década. Alfonso Cuarón, finalmente terá o reconhecimento que sempre mereceu.

Nota: 10/10

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Crítica: "12 Anos de Escravidão"

Título original: 12 Years a Slave 
EUA/Reino Unido, 2013, 120 min.
Direção: Steve McQueen
Roteiro: John Ridley (baseado na autobiografia 12 Anos de Escravidão, de Salomon Northup)
Elenco: Chiwetel EjioforMichael Fassbender, Michael K. WilliamsLupita Nyong'o, Brad Pitt




"McQueen queria fazer um filme com uma temática que Hollywood ignora - e o consegue brilhantemente."


por Bruno Albuquerque

O racismo existe até hoje, e isso é um fato incontestável. Por mais que seja algo ignorado pela população de uma forma geral, a discriminação por pessoas de etnias diferentes causa não só distanciamento social, mas como depressão pessoal por parte de cada afetado. Porém, tal preconceito tem uma origem extremamente estabelecida: a escravidão de negros, que ocorreu há alguns séculos na nossa história. E, de fato, o tema é extremamente ignorado não só pela população, mas como também por Hollywood. Nota-se, por toda a projeção de 12 Anos de Escravidão, que Steve McQueen estava querendo passar uma mensagem - mensagem, esta, que perdura pelas mais de duas horas de longa, com o único intuito de chocar, informar e conscientizar o público sobre as atrocidades inumanas ocorridas na época da escravatura - e estabelecer um paralelo com os dias de hoje.

Apenas imagine o desespero de, sendo um homem livre, casado e com dois filhos, você ser sequestrado e traficado como um escravo, totalmente desprovido da sua incontestável liberdade da qual sempre desfrutara. Desde o começo de 12 Anos, o filme se propõe a não só retratar esse desespero, mas como traçar um comparativo entre a vida de uma pessoa liberta e uma escravizada. A diferença é tremenda - e McQueen não economiza no teor de realidade para retratar sua história: vemos o protagonista ser enforcado, chicoteado, torturado com tábuas de madeira e tendo que ver vários amigos passando pelo mesmo e até sendo mortos. O longa choca por ser cru - principalmente num plano sequência de esmagar o coração de qualquer um, próximo a sua conclusão -, mas se engrandece ao usar isso como artifício para sustentar a ideia que nos quer passar.

Tecnicamente no filme não há o que reclamar: o figurino mostra o contraste social entre senhores de engenho e escravos - mas, acima de tudo, entre homem livre e homem aprisionado. Notem como os trapos sem cor, sem vida de Platt se contrapõem ao vinho forte das vestimentas que usa antes de Solomon. A fotografia forte e cheia de cores fortes nos momentos alegres (apenas alguns poucos no longa inteiro), é contrastada pelo quase preto e branco das cenas durante a fase escrava de Solomon. Tudo em prol da narrativa: 12 Anos de Escravidão é um filme sobre contrastes sociais, sobre as diferenças sem sentido que existem entre pessoas com cores de pele diferentes.

As atuações são sensacionais: não só Chiwetel Ejiofor como Solomon está incrível - e destaco as cenas em que argumenta sobre a sua liberdade -, mas Michael Fassbender rouba a cena sempre que surge, principalmente em seus momentos de fúria, assim como Brad Pitt, encarnando um simpatizante do abolicionismo que ajuda Solomon no que precisa - e que não a toa se parece fisicamente com Jesus Cristo, já que no enredo do filme ele é o "grande salvador". Também vale mencionar a sensacional interpretação de Lupita Nyong'o, que faz uma Patsey incrivelmente corajosa ao mesmo tempo em que demonstra uma enorme fragilidade, fazendo-se merecer o Oscar de melhor atriz coadjuvante.

Porém, 12 Anos de Escravidão não é apenas elogios: há alguns pequenos probleminhas, como a falta de explicação sobre o tempo da narrativa. Se não fosse o título, jamais saberíamos que Solomon foi chamado de Platt por 12 anos - assim como na cena final há um certo estranhamento no reencontro de Solomon com sua família (sendo que o filme termina sem explicar exatamente como ela sobrevivera sem a sua presença).

Mas, o mais interessante no filme não é a sua preocupação em funcionar como longa-metragem - mas, sim, em utilizar a 7ª arte como um meio de espalhar sua principal mensagem. Como já dito anteriormente, 12 Anos é um retrato da época em que se passa, um veículo para nos mostrar a hipocrisia das pessoas daquela era ("Por que me castigastes, ó Deus? Que pecado cometi?" pergunta o estuprador, torturador e humilhador senhor de engenho após constatar que sua plantação está sendo atacada por uma praga), assim como o quanto sofriam a classe oprimida. Acima de tudo, o filme foi a maneira que McQueen encontrou para gritar o que sempre quis sobre o assunto - e, principalmente, sobre os efeitos que o mesmo gera na sociedade mundial (sim, não só em um país específico), sendo um problema gravíssimo e que repercute negativamente de maneira massiva.

Intimista, direto ao ponto, de carga emocional surpreendente, de uma crueza inesperada, com uma mensagem certeira e objetivos alcançados com sucesso, além de incrivelmente emocionante. Assim, defino em poucas palavras o provável ganhador do Oscar de 2014: 12 Anos de Escravidão.

Nota: 9/10

Crítica: "São Paulo em Hi-Fi"

Título original: São Paulo em Hi-Fi
Brasil, 2013, 95 min.
Direção: Lufe Steffen
Roteiro: Lufe Steffen
Elenco: Kaká di Polly, Elisa Mascaro, Miss Biá, Celso Curi, James Green, João Silvério Trevisan, Leão Lobo, Gretta Starr, Mário Mendes




"Os anos 70 foram uma década bicha."
(Mário Mendes)


por Gabriel George Martins

Dias atrás, quando voltava de uma casa noturna na rua Augusta, aqui no centro de São Paulo, fiquei olhando para os passantes. Cinco da manhã de um domingo, e havia movimento como jamais tinha visto. Em cada canto, alguém bebendo, alguém comendo, alguém conversando. Multidões se dirigindo ao metrô, a fim voltar para casa — e o metrô, a essa hora, era composto exclusivamente desses seres noturnos, pessoas voltando do rolê. Mas, ainda na rua, subindo 1km até a avenida Paulista, contemplava as nuances da madrugada. Frente a uma modesta barraquinha de cachorro-quente, dois homens e uma mulher papeavam, despreocupados, sentados à porta de uma loja. Do outro lado, mais acima, uma loira jogada ao chão chorava e brigava com um rapaz — e depois se levantou, e caminhou, e o rapaz a acompanhava; havia um terceiro na cena, mas não pude concluir se ele estava com os dois ou não. Vi isso, e mais um pouco, até chegar ao metrô.

Essas pessoas, de onde vêm? Vêm de todo lugar: das zonas oeste e leste, norte e sul; ou moram no centro, em velhos casarões, apartamentos, ou na rua, junto ao lixo metropolitano, à porta de um bar. De onde veio todo esse movimento? Quando foi que teve início? Essas perguntas são menos óbvias, e remontam a um tempo no qual a ocupação do espaço urbano por diversos grupos étnicos e culturais constituia um inusitado projeto de luta por direitos humanos básicos.

Mas, num tempo de batalha entre shoppings e comércios de rua, entre os multiplex e os cineminhas modestos; de protestos constantes, em que a mobilidade humana volta a ser pauta no cotidiano das grandes metrópoles, a História se mostra cíclica. Novamente, trava-se um duelo entre valores enferrujados da sociedade e anseios de grupos marginalizados. E o exame de nosso passado pode lançar algumas luzes sobre as atitudes a serem tomadas, em coletivo, para a coletivização metropolitana e a inclusão de grupos. Nessa perspectiva histórica, São Paulo em Hi-Fi constrói um divertido caleidoscópio de casos e causos de gente que colaborou para a quebra (não total, infelizmente) de alguns preconceitos, e permitiu a muitos de nós tomar a iniciativa de usufruir de nosso ambiente cívico, de nossa cidade. Ou lutar por isso.

Os grupos em foco aqui têm muito em parecido: homossexuais, transexuais, transformistas. Na noite gay paulistana das décadas de 70 e 80, eles chamaram a atenção das autoridades — em período ditatorial — e da mídia, com seu espalhafato e luxúria. Faziam-se ouvir em meio a um preconceito amplamente difundido, e enfrentaram o auge da AIDS como vítimas, mas também como combatentes. Importantíssimos, portanto, para uma maior inclusão social nos dias atuais. Tendo como referência os depoimentos de testemunhas oculares — e legítimos protagonistas — dos eventos daquela época, o documentário de Lufe Steffen (A Volta da Paulicéia Desvairada) entremeia fotografias e vídeos de arquivo com entrevistas. Entre os ouvidos, a drag queen Kaká di Polly, o jornalista Celso Curi, o historiador James Green, e o mais sublinhado dos nomes, Elisa Mascaro — empresária, dona de importantes clubes gays no período, como a casa noturna Medieval.

Mascaro é o ponto de ligação entre todas as outras personagens da cena gay paulistana. Seu talento e popularidade contribuíram para a fundação de mais e mais clubes, em diferentes pontos do centro da cidade. Ela própria, não se limitando à Medieval — que nem foi seu primeiro empreendimento —, contribuiu para a criação de uma espécie de contracultura da noite. O longa não hesita em ressaltá-lo: a cada historieta de um clube, há vários envolvidos, comprometidos também com o passeio por outros lugares; e tudo, em geral, leva inequivocamente a Elisa Mascaro e seu marido, tipos pioneiros no desafio à moral vigente.

Mas a gênese desse movimento se encontra muito antes disso, nos barzinhos e galerias, nas reluzentes noites dos anos 60. Contam os entrevistados que era um período de maior aceitação, no qual muitos não faziam tanto caso de poucos. Contudo, as relações homoafetivas ainda se restringiam a esses redutos, pontos de encontro de encontro de onde começaram a brotar as primeiras sementes do que viria a ser a Era de Ouro da noite paulistana, com os clubes de transformistas.

Curioso nesse breve período anterior, porém, era como o cinema servia desde já como escapismo para a dureza da realidade. Depoimentos aludem aos casais homossexuais que utilizavam as instalações de populares cinemas de rua (Bristol, Marabá, Marrocos, entre outros), fugindo dos olhos vigilantes e ameaçadores os espreitando do lado de fora. (Mas, claro, havia sempre os guardinhas do cinema em sua cola, a força "policial" desses estabelecimentos.) Partindo disso, o filme de Steffen acaba por assumir uma discreta e singela (e rápida) homenagem ao cinema e suas figuras. Por um lado, nos anos 60, era o cinema um fator escapista (como é escapista, igualmente, este documentário, que procurando nos colocar frente à realidade, nos atira em um passado fantástico e aparentemente distante, como a ficção). Uma das boates — a Village — até contava com uma sala para a exibição de filmes gays. Por outro, nos anos 70 e 80, era o cinema que escapava para a realidade, num jogo de influências e mitificação de estrelas. Não à toa, um retrato de Audrey Hepburn (diva) aparece numa das imagens de arquivo, junto a uma transformista; os astros do cinema deram a tônica estética e performática nas apresentações dos clubes.

O cinema, bem como a música, o teatro e a teledramaturgia, serviram aos artistas como ideal profissionalizante. Tornaram-se modelos para as apresentações e indumentária, numa crescente especialização e luxuosidade do meio. Steffen infunde esse conceito no público com depoimentos relembrando as mil e uma extravagâncias dos frequentadores desses locais, que se produziam como nobres para as noites — e até chegavam aos locais montados em elefantes. A influência gradual de grandes estrelas e obras (Os Embalos de Sábado à Noite, Dzi Croquetes, David Bowie, Dancin' Days, entre outros) ainda colaborou no requinte dos espetáculos. Para se ter uma ideia, os entrevistados afirmam que, nos primórdios, as apresentações não se utilizavam de dublagem, algo adotado sem hesitação anos mais tarde. O propósito era, além de ocupar a noite paulistana, ostentar diante dela, para que todos admirassem.

Por ocasião da AIDS e da repressão, esse ideal de ocupação e ostentação foi elevado ao máximo, e Steffen faz bem em conduzir todas essas histórias sorrateiramente à origem de uma legítima manifestação em prol dos direitos civis dos homossexuais. Parece-nos improvável, porém natural, que tudo desague na Parada do Orgulho LGBT. Improvável, pois é perfeitamente assumido pelos entrevistados que os movimentos iniciais pela ocupação da noite não tinham finalidade de protesto (embora possuíssem inevitável conotação política), mas natural porque é um fim bastante lógico.

São Paulo em Hi-Fi revisita o passado com vistas ao presente e ao futuro. A Parada LGBT paulistana, a despeito de sofrer críticas quanto à perda gradual de sua função, reúne até 4 milhões de pessoas todos os anos. E, num país em que lideranças religiosas com visões anti-homoafetivas crescem e se impõem nos âmbitos político e legal, a Parada ainda significa uma proposta de luta, pelo simples fato de existir. Coloca-se como um chamamento, um convite à observância do comportamento homotransexual, à admiração de sua existência — e ainda o faz de modo espalhafatoso, colorido. É também a negação de um planejamento urbano negligente para com o social, que preza pela inacessibilidade (mesmo sendo a Parada um evento institucionalizado).

Os maiores deméritos do filme de Steffen residem não em seus argumentos, mas em sua execução: sua estrutura caleidoscópica, capaz de fornecer ao espectador uma ampla visão dos fatos, soa repetitiva e um tanto monótona. Com tantos lugares, e tantos depoimentos, a irrequieta alternância entre falas, imagens e vídeos, falas, imagens e vídeos, falas, imagens e vídeos, parece cansar fácil em seus quase 100 minutos de duração.

Não que seja uma catástrofe; ainda é possível aproveitar o filme — e rir das situações mais insólitas —, passeando pelo centro de São Paulo, mas em um tempo mais remoto. Uma Frei Caneca, uma São João, uma alameda Santos, uma rua Augusta de um passado de 30, 40 anos, e sorrir com o glamour de pessoas que, sem se darem conta disso, fizeram de tudo para nos permitir aproveitar da liberdade, do direito de circular em uma de cidade à noite, em hi-fi.

Nota: 7/10

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Crítica: "O Gebo e a Sombra"

Título original: Gebo et l'Ombre
Portugal/França, 2012, 95 min.
Direção: Manoel de Oliveira
Roteiro: Manoel de Oliveira (baseado na peça O Gebo e a Sombra, de Raul Brandão)
Elenco: Michael Lonsdale, Claudia Cardinale, Leonor Silveira, Ricardo Trêpa, Jeanne Moreau, Luís Miguel Cintra




por Gabriel George Martins

Um espectro ronda a Europa: e não, não é o espectro do comunismo. Comunismo, que hoje, já muito difamado e debilitado, não constitui real ameaça às economias neoliberais. Não. O espectro é o do próprio capitalismo. O espectro de um sistema que teve de se reinventar constantemente, sem se conhecer em sua plenitude. Sistema autofágico, negligente em muitos campos — em especial, nos sociais —, esquecido de que sua maior fonte de renda seria também sua tragédia. Instituições seculares, detentoras do capital mundial por muitos e muitos anos, agora veem em economias ascendentes, como a China, seu maior algoz, enquanto prosseguem cavando em suas próprias estruturas internas o seu revés.

O capitalismo, assentado não só numa prática econômica, mas em filosofias de vida e iniciativas morais e políticas, pena para se reerguer, como fizera antes. Mas, em um mundo no qual o bizarro termo "socialismo de mercado" parece tão em voga, o renascimento soa fadado ao fracasso. Com isso, todos os valores praticíssimos defendidos pelos velhos senhores do capital, e impostos à sua massa comandada, parecem ruir à medida que a realidade se modifica. Ainda não sabemos se para a melhor ou para a pior — coisas "boas" vêm, coisas "más" também. Bem se assemelha esse espectro a uma sombra, disforme e irresoluta, ambígua.

A sombra de João (Trêpa) incomoda Gebo (Lonsdale). Velho e cansado, ele trabalha como contador para sustentar a esposa, Doroteia (Cardinale), e a nora, Sofia (Silveira). A primeira vive aguardando o retorno de seu filho, que fugiu há muito. Sofia, mais contida, sustenta uma espera surda e muda pelo marido, enquanto ocupa a lacuna deixada pelo filho na vida do pai. A incompleta família recebe com frequência a visita de seus vizinhos, Chamiço (Cintra), um fracassado teatrólogo, e Candidinha (Moreau), que passeia pelas casas fazendo visitas e bordando. Uma rotina irretocável. Tudo o que Gebo menos poderia esperar, no entanto, é que o retorno de João tornaria sua sombra tão presente e ameaçadora no cotidiano familiar.

Embora crie uma certa simpatia entre suas personagens — todas muito frágeis e desiludidas — e o público, Manoel de Oliveira não hesita em desmascarar a vida programática de Gebo e dos outros. Faz isso aos poucos, primeiro a partir da mostra de seu dia-a-dia. Depois, com a chegada de João, usa o novo elemento como juiz nas ações e motivações de suas peças. Mas nada nem ninguém sai livre de acusação, e o próprio juiz se torna alvo de sua sombra.

A sombra da ambição, que persegue João, não é a mesma sombra do comodismo, caçadora de Gebo. Ambos possuem seus aliados nas bases familiares — assim como Doroteia parece se alinhar a João, Sofia se coloca mais ao lado de Gebo. Mas mesmo isso é ameaçado pelas circuntâncias. O confronto entre pai e filho, apesar de parecer inevitável, é sempre evitado, pois o choque entre as duas pode produzir mágoas ainda mais profundas nos corações de cada um. As sombras, afinal, terminam por se fundir, numa imensa escuridão que a todos recobre. Não é difícil perceber que, tendo suas distrações — Gebo, os números; Sofia, o servilismo; Chamiço, o teatro; Candidinha, os bordados e as visitas — como forma de encarar (suportar) a dura realidade, nenhuma personagem esteja livre de anseios mais complexos. Anseios secretos. Todos têm mais ou menos a ver com a saída de sua condição miserável.

A escuridão, enorme sombra que é, é a sombra mesma do capitalismo. Ou, mais intimamente, do capital, seja em ideia (as contas no livro de Gebo) ou em presença (a maleta de dinheiro). E, como o capital imprimisse em seus manipulados uma visão ora simplória, ora radical das coisas do mundo, não sobra um só ileso às suas exigências. Chamiço faz de seu comentário político um elogio ao marquês de Pombal, enquanto João vê nos criminosos a sinceridade que não vê na família. Um prefere se ater a personas violentas para se abster de manifestar sua própria temeridade; o outro defende a admissão da violência e do crime, algo intrínseco e inegável à natureza humana. São reações díspares, mas acondicionadas pela noção de dinheiro, de posse, de propriedade.

O capital também aspira à internacionalização. O capital corre, de nação em nação, rompendo altas barreiras, como a língua. A simplicidade de Gebo não pode nem se deixar levar por isso, mas a sagacidade de Oliveira não o permite escapar, e, não obstante os nomes portugueses das personagens, o longa é falado todo em francês. O deslocamento não poderia cair mais fascinante, num elenco composto de atores portugueses (Trêpa, Silveira e Cintra), e franceses (Lonsdale e Moreau), além da italiana Cardinale. O projeto multinacional contrasta com o anacronismo de obras recentes de Oliveira. Singularidades de uma Rapariga Loura se passa nos dias atuais, mas tem cara e corpo de filme de época — e O Estranho Caso de Angélica toma lugar na década de 50, mas tem ares contemporâneos. Com efeito, o cineasta adora afastamentos, temporais ou espaciais.

Não obstante, a união de nacionalidades não vai a lugar algum dentro do limitadíssimo cenário. Passando-se quase em sua totalidade na sala da casa de Gebo, o longa permite a seus intérpretes liberdade reduzida de movimentos. Lonsdale passa a enorme parte do tempo sentado — conferindo à sua personagem o cansaço de que ela reclama. A atuação de Lonsdale é essencialmente verbal, mas os gestos e as expressões de esgotamento lhe arrancam um desempenho bastante satisfatório. Mesmo sentado.

A película inteira, entretanto, se baseia no gesto e na palavra, numa representação para lá de teatral. Os longos planos fixos colaboram para essa sensação de se estar assistindo a uma peça. A promiscuidade do filme com sua fonte de inspiração — o drama homônimo do escritor português Raul Brandão —, porém, não se espalha. O longa foge ao teatro filmado não somente pelo milagre da edição, mas por ser puramente cinematográfico. A dinâmica entre luz e sombras não poderia ser mais apropriada a uma arte cujos primórdios remontam à dicotomia. O ambiente da casa, imerso numa mórbida escuridão, só se ilumina um bocadinho com as velas. A chuva ininterrupta do lado de fora ainda é responsável por sequestrar o sol, a luz natural, e imergir a residência numa absurda escuridão. É raro quando a sala parece mais iluminada, e as personagens não hesitam em externar isso, com um mínimo de contentamento por (mal) poderem fugir às sombras que as perseguem.

Essas pessoas não conseguem enxergar em meio às sombras. As vicissitudes não lhes permite isso, e nem eles estão acostumados a ver senão por meios artificiais. Quando Gebo, em um assomo de coragem, exclama — "Eu quero ver!" —, e o faz tirando os óculos do rosto, parece-nos uma ironia, um discreto toque de comicidade num momento decisivo. Mas, na voz de Gebo, ou Lonsdale (este é a sombra daquele, e vice-versa), soa como o acolhimento final de sua própria mágoa. Mágoa proveniente de uma vida inteira dedicada ao dever. Que dever? O dever para com o dinheiro alheio. A mágoa é a visão; visão de uma realidade na qual muitos viveram — e vivem. Mágoa de terem suas vidas controladas, direta ou indiretamente, por um sistema. E na falência desse sistema, nada receberem pelos "serviços prestados", nem um pedido de desculpas pelos transtornos causados.

O Gebo e a Sombra é uma fábula do século XIX para problemas do século XXI. Trocamos a posição de um X e de um I, mas nada alteramos na forma como as coisas se deram nesses tempos. É verdade, a ordem de alguns fatores foi alterada, mas o produto ainda é o mesmo, porque o capitalismo se reinventou. E agora, que sua verve renovadora se esvai, como tudo fica? Fica em sombras. Sombras para todos. Talvez não nos tenhamos dado conta plenamente das causas disso tudo, desses problemas. Mas conhecemos as consequências; com alguma sorte, um dia encontraremos luz.

Nota: 9/10

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Crítica: "A Menina que Roubava Livros"

Título original: The Book Thief
EUA/Alemanha, 2013, 131 min.
Direção: Brian Percival
Roteiro: Michael Petroni (baseado no romance A Menina que Roubava Livros, de Markus Zusak)
Elenco: Sophie Nélisse, Geoffrey Rush, Emily Watson, Ben Schnetzer, Nico Liersch, Joachim Paul Assböck, Sandra Nedeleff, Hildegard Schroedter, Rafael Gareisen, Gotthard Lange, Godehard Giese


"Por mais que seja um filme eficiente, falta um pouco mais de ambição nessa adaptação do aclamado best-seller de Markus Zusak."


por Leo Bastos

É impossível conduzir a abordagem de um assunto tão forte como Nazismo de forma suave apenas para contar uma história que se passa naquele período, esquecendo-se do mais importante: o estudo a fundo dessa época. Assim como também não funciona imaginar o tema como personagem coadjuvante de alguma obra. Quem assistiu a filmes como A Lista de Schindler, O Pianista e até mesmo A Vida é Bela (que apesar de ser bastante poético, não foge da grande reflexão) sabe bem do que estou me referindo. E por mais que a leveza da adaptação cinematográfica do best-seller de Markus Zusak (livro esse que eu não li) possa tocar o telespectador em alguns momentos da projeção, falta muita ambição no foco das discursões que propõe. Dirigido pelo estreante em cinema Brian Percival, que foi responsável por alguns episódios da série britânica Downton Abbey.

O roteiro adaptado por Michael Petroni (do entediante As Crônicas de Nárnia: A Viagem do Peregrino da Alvorada) começa em 1938 na Alemanha, quando a jovem Liesel Meminger (Nélisse) presencia a morte do irmão mais novo durante uma viagem aos quais eram levados pela mãe, perseguida por ser comunista, para viverem com o casal Rosa (Watson) e Hans Hubermann (Rush) – ao qual Liesel constrói um grande companheirismo - em uma rua chamada Paraíso. Liesel, que ainda não sabe ler nem escrever, inicialmente tem dificuldades para lidar com sua nova vida. Aos poucos, a garota aprende a magia das palavras, e fica completamente apaixonada pelo universo, levando-a a adquirir ilegalmente alguns livros. Faz amizade com o garoto Rudy (Liersch) e ganha proteção da mulher do prefeito, Ilsa Hermann (Auer) que dispõe de um grande acervo literário. Mas seu cotidiano e de seus pais adotivos começa a ficar agitado com a chegada do judeu Max (Schnetzer), filho de um velho amigo de Hans, o rapaz acaba pedindo proteção à família.

O filme é narrado pela morte de forma inconstante, recurso bem empregado, começando pela falta de exagero, sempre em momentos bem vindos, que os tornam interessantes até certo ponto e ainda ajuda na narrativa. Pena que essa ultima citada na maioria das cenas apenas se preocupa em centrar nos conflitos pessoais desses personagens, deixando o tema principal de lado para só usá-lo quando o roteiro precisar de algum clímax. Assim o nazismo vira apenas um cenário para a saga de uma menina e o novo mundo que lhe é apresentado. Só no finalzinho é que vemos um pouco de conteúdo a mais, na abordagem dos ataques aéreos da segunda guerra.

Mas de toda forma apresenta bons personagens, e mesmo apresentados de forma irregular e ocupando um peso não tão forte quanto o contexto histórico que vivem, ainda sim continuam sendo o ponto forte do longa-metragem: Liesel consegue segurar o peso de protagonista, e sua relação com os demais é capaz de despertar o carisma do público. Com seu amiguinho Rudy, ela vive a inocência da idade ao meio das descobertas daquele mundo imundo. Já com Max, a garota sente uma espécie de dever de proteção. Já com os pais adotivos, tem que lidar com jeito amargo da mãe, que nos conquista ao demonstrar suas facetas de carinho e ternura de forma sútil e coesa. E com o pai, vive em grande harmonia e cumplicidade. Geoffrey Rush e Emily Watson desempenham ótimas performances, assim como os jovens Sophie Nélisse e Nico Liersch encantam pela maturidade em cena. Infelizmente Ben Schnetzer não consegue transpor o mesmo peso que Max tem no enredo na sua interpretação.

Apesar das interações de Liesel e Max terem mais destaques no filme, são seus poucos momentos com o garoto Rudy que fascinam. Ele sempre fiel à amiga, desde os primeiros minutos de projeção, onde tenta lhe tirar um simples sorriso mesmo com o desprezo da tal, já que a garota ainda está abalada para aceitar sua nova vida e aos poucos vai iniciando uma linda amizade. Rudy ainda compartilha da ilusão de venerar a guerra, sendo vítima da perfeição que eram as propagandas nazistas, e da verdadeira lavagem que faziam nos habitantes, (afinal pra isso eles eram geniais), mas como havia dito, Rudy tem pouco tempo em tela, e essa discussão assim com o filme em si é abordada de forma artificial. Uma pena.

Já a direção de Brian Perciva incomoda devido às tentativas excessivas de manipular as emoções do público, apelando para o uso da trilha sonora melosa e exagerada de John Williams (responsável por tantas composições extraordinárias da história do cinema, nos últimos tempos trabalhando em filmes como Cavalo de Guerra e Lincoln, vem demonstrando falta de criatividade) em sequências com uma série de tomadas óbvias e diretas, mas acerta em alguns momentos, como a cena em que um soldado vasculha o porão da casa dos Hubermann à procura de Max. A sequência é muito bem conduzida, equilibrando bem a tensão.

Na parte técnica oscila entre acertos e erros. A fotografia beneficia os cenários, como as ruas alemãs que ganham tons brancos e cinzas, contribuindo para o clima triste de opressão pelo partido nazista. Por outro lado, há uma pequena falha de construção desses ambientes, exemplo de uma cena onde aparece uma chaminé com fumaça parada, onde fica visível a cidade cenográfica. Pequenos descuidos que poderiam ter sido evitados pela produção.

Tendo um final que embora cause momentos de comoção, perde muito de seu impacto e soa muito mais como um recurso para levar as lágrimas. Mas apesar de todos os seus problemas, principalmente pela falta de pretensão de ir fundo no seu contexto, A Menina que Roubava Livros ao menos tem a qualidade de conseguir com que a plateia se importe com os personagens, e isso já vale a sessão.

Nota: 7/10

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Crítica: "O Menino e o Mundo"

Título original: O Menino e o Mundo
Brasil, 2013, 80 min.
Direção: Alê Abreu
Roteiro: Alê Abreu
Elenco: Vinicius Garcia, Lu Horta, Marco Aurélio Campos





Aos olhos de uma criança


por Gabriel George Martins

Quando tinha meus sete, oito anos, costumava inventar novos e muitíssimo interessantes amigos imaginários para me divertir. Era simples: dava-lhe um nome, umas poucas características, e saía por aí conversando com ele. Conversando. Minha família certamente acreditava que eu tinha algo de especial. Mas a única especialidade minha era o fato de ser criança, e eles, adultos.

Lembro-me um pouco mais acuradamente de um deles, apenas. Hellmanns (sim, por causa da maionese) era um sujeito cheio de não-me-toques e ideias nada claras. Certa feita, disse à minha irmã para não se sentar em tal cadeira; "O Hellmanns tá sentado aí!", alertei. Numa entrevista com um grupo de psicólogos — acho que eram psicólogos, não me lembro —, perguntaram sobre Hellmanns, e eu lhes dei todos os detalhes desse meu colega. Os especialistas se entreolhavam, rindo, como se vissem graça naquilo ou soubessem o que significava. Eu não sabia o que significava. Sabia que Hellmanns era alguém sempre próximo, e ao mesmo tempo invisível aos olhos de todos.

Ele não durou muito. Sumiu, sem deixar saudades, em algum momento da infância tão esquecido quanto os outros amigos imaginários. O porque de ele ter ido embora não constitui uma pergunta. Ora, era natural, e inevitável. Algo mais interessante viria: amigos reais, namoradas, livros, filmes. Hoje — literalmente hoje, pois entrei nessa reflexão há menos de trinta minutos —, acredito que Hellmanns jamais tenha existido, mesmo para mim. Porque Hellmanns era eu. Parece muito óbvio, mas para mim nunca foi clara essa proposição, nunca foi fácil conceber a existência dele em mim, e de mim nele, mutuamente. Hellmanns era a forma como eu via o mundo — Hellmanns era a forma como eu me via diante do mundo. Não à toa, por vezes ainda me sinto invisível perto das pessoas, uma sensação ora engraçada, ora odiosa. Éramos um só Menino, diante de um vasto e assustador Mundo.

Mas onde termina o Menino e começa o Mundo? Impossível dizer. As coisas se mesclam, num olhar pueril e ingênuo. Quando o Menino é o Mundo, torna-se mais aceitável a infância aos olhos de quem já não é criança. Se o Mundo não é o Menino, porém, sobra-nos a desilusão, a amargura no olhar, a realidade em cores mortas.

Pois, precisamente, a animação O Menino e o Mundo parte não de um, mas dos dois pressupostos. A contraposição entre a rudeza da realidade e o ludicismo da infância, de um lado, e sua simbiose, do outro. Resulta na universalidade da obra, que não é nem voltada exclusivamente ao público infantil, nem se apresenta como adulta. Em vez disso, o longa de Alê Abreu (Garoto Cósmico) comunica ao ser humano. E não só ao brasileiro, mas a todo ser humano, a partir de suas múltiplas esferas (psicológica, econômica, emocional, social), sua pluralidade temática — atópica e atemporal —, e de sua estranha linguagem. Estranha, porque suas frases de trás para frente nada dizem de claro, mas explicitam sem problemas suas intenções; constituem nova língua, língua de todos. Estranha, pois numa era de reinado absoluto da animação 3D, opta pela simplicidade, por desenhos em papel, em estilo assumidamente infantil.

O filme acompanha o Menino — ou Oninem, na língua ao contrário. Na ocasião da partida de seu pai, que se vai para a cidade em busca de melhores condições de vida, ele decide abandonar sua mãe e sua aldeia para procurá-lo. Passa pelo campo, e chega à cidade, descobrindo um Mundo bastante diferente de sua pacata vida. Na bagagem, leva apenas uma fotografia da família, e na memória carrega o som da flauta do pai.

O ruído, aliás, importante elemento da obra, se faz mostrar em vários momentos. O som visual, colorido, é mais uma das brincadeiras narrativas de que Abreu dispõe para construir seu atraente universo. Para as crianças, tem a graça; para os adultos, ressalta a natureza viva do Mundo sob o olhar do Menino. É a primeira relação simbiótica da trama. Ainda aparece novamente, nas ondas sonoras unicolores de uma sirene fabril, e na figura do pássaro colorido, criado pela batucada de um bloco carnavalesco.

Com as cores, vêm a impressão de movimento suave que guia a narrativa. A música, portanto, evocando as cores, é diretamente responsável por esses movimentos. Não à toa, a trilha de Gustavo Kurlat e Ruben Feffer — com participação de Emicida e do grupo Barbatuques — abusa de ritmos festivos e doces para construir a atmosfera delicada da aldeia do Menino e de algumas personagens. Em oposição a isso, os ritmos ordenados e repetitivos se associam à dureza do Mundo. A manifestação disso também se dá na movimentação dos caracteres, e parece muito apropriado que aos olhos do Menino (e aos nossos) os batuques do bloco sejam acompanhados de uma dança espalhafatosa e desordenada, e a sirene da fábrica traga consigo um outro tipo de dança, mecânica, como é o trabalho. Lembra, de longe, a coreografia no maquinário de Metropolis — na qual os operários apenas ensaiam sua auto-imolação ao deus Moloch.

A mecanização, ademais, é um ponto chave na trama. Se as máquinas podem ser encaradas como uma oportunidade para o homem desfrutar de si mesmo mais livremente, o longa de Abreu adota um ponto de vista (quase) oposto. Afinal, aqui as máquinas serviriam meramente como pretexto para a marginalização dos indivíduos, e concentração de poder na mão de uns poucos privilegiados. Mas a distopia é distorcida pelo olhar afável da criança, e as máquinas, embora ainda implacáveis, assumem a forma de bichos-máquina. Bichos são o que crianças conhecem e assimilam do mundo, e levam para outros campos: uma grande embarcação se torna um gigantesco pato metálico, o trem é uma minhoca metálica fumante...

Também, no meio da prisão do trânsito, abarrotado de carros (máquinas, enfim), a bicicleta irrompe, com sua modéstia libertadora. Proporciona ao humano o entretenimento que o trabalho não lhe dá. Não só: é capaz de se metamorfosear, de um meio de transporte a um instrumento musical. Um retorno aos dois atributos primordias do filme: o som e a cor. Ambos podendo ser guardados em receptáculos, como todos gostariam que fossem. A cor se retém na fotografia — mais parecida com uma pintura do próprio Menino, bem como todo o Mundo. O som fica num pote, escondido, enterrado, pronto a ser consultado se assim se desejar. São maneiras eficazes de preservar uma memória que certamente falhará um dia, e o Menino parece saber disso.

E é sabendo disso que, mesmo sem querer, ele acaba atraindo para si figuras paternas nos dois ambientes, campo e cidade. São substituições impensadas e improvisadas de seu próprio pai, e terminam por preencher as lacunas em sua memórias; lacunas de situações em que a presença de um pai era fundamental.

Cada figura denota, seja no trabalho, seja na postura, toda uma lógica exploratória em andamento, e evoluindo para melhor nos ferrar. E dentre as ferramentas usadas para essa exploração, a propaganda se destaca por ser onipresente — e onipotente, como um deus (Moloch?), por atingir a todos. A propaganda, sabiamente retratada por Abreu como um amontoado de mensagens em meios diversos (nada muito diferente do que é em nosso mundo), é um convite aloucado ao consumo, embora nada ofereça de bom aos consumidores. Aos olhos do Menino, é algo maluco e incompreensível; mas é fácil apostar que, na ótica de seu temporário tutor na cidade, a coisa não diverge tanto.

A propaganda se verifica aqui, e ali, e ali, e mais ali, rompendo com a beleza do colorido natural ou mesmo do branco, onde todas as outras cores flutuam. O branco é a presença de todas elas. Já o preto — das máquinas, da polícia —, ausência delas, engole-as todas, como engole aos humanos, um a um, em razão de sua essência predatória. Não suficiente, o desenho dos lápis nos oferece backgrounds despojados, mas completos, valorizando os espaços. Seja o caos poluído da metrópole (geometria quebrada, abuso de vértices, cores mortas), seja o vazio da aldeia (formas mais arredondadas, excesso de branco, pitacos harmonicamente coloridos).

Com ares experimentais, O Menino e o Mundo ousa em inúmeras perspectivas. Nenhuma parece tão sólida quanto o retrato multidimensional da infância; não só a adolescência, afinal, é época de desbravamento interior. A criança, pouco sabendo disso, se conhece perante o mundo — em simultâneo, conhece também o próprio mundo. O movimento de simbiose para contraposição, e vice-versa, é constante e ininterrupto. O aprendizado retirado daí fica para toda uma vida, e nunca é impossível observar o quanto de uma criança permanece em um adulto.

Eu, por exemplo, nunca deixei de ser uma criança. Mesmo aos 18 anos, quase 19, jamais cessei de descobrir algo novo. Se não com a frequência desejada, com a regularidade que me é permitida. Coisas que me despertam a criatividade, em geral, ou tão somente me divertem. Tenho ainda comigo uma coleção de desenhos feitas entre a 4ª e a 6ª série, imitando jogos de tabuleiro, com 30 ou 32 casas e desafios, pontos a serem conquistados... Datam todos de depois de Hellmanns, mas não seria um exagero afirmar que provavelmente foi ele quem os fez por mim. Hoje, sou incapaz de fazer um esboço decente de desenho. E, no entanto, naquela época fiz vários, cada um com seu charme especial. Por que não haveria de ter algo de Hellmanns ali? Ele com certeza foi meu impulso criativo, atualmente voltado aos textos. Meus desenhos e textos sintetizam Hellmanns, e Hellmanns sou eu. Ele era meu Mundo, e o Mundo éramos nós, Menino.

Nota: 10/10