terça-feira, 1 de abril de 2014

Crítica: "Entre Nós"

Título original: Entre Nós
Brasil, 2013, 100 min.
Direção: Paulo Morelli, Pedro Morelli
Roteiro: Paulo Morelli, Teo Poppovic
Elenco: Caio Blat, Carolina Dieckmann, Martha Nowill, Maria Ribeiro, Júlio Andrade, Paulo Vilhena, Lee Taylor.




"A serenidade e a vitalidade da nossa juventude baseiam-se em parte no fato de que nós, ao subirmos a montanha, não vermos a morte, pois ela encontra-se do outro lado da encosta."
(Arthur Schopenhauer) 

por Leo Bastos

A juventude traz consigo os mais belos sonhos, regados a uma visão poética e acompanhados da urgência de realizá-los como se hoje fosse o último dia de nossas vidas. Tudo seria perfeito caso não houvesse os acontecimentos seguintes: a fase adulta. Aqui todo encanto perde-se em meio ao caos da “seriedade”, e uma eterna sensação de tempo perdido. Decepcionar essas nossas próprias versões juvenis cheias de esperança se torna o pior dos pesadelos. Entre Nós sintetiza tudo isso através de uma explosão de sentimentos que derivam dos gloriosos momentos de prazer até a mais perversa melancolia compartilhada entre os personagens. Um trabalho humano antes de qualquer coisa. Que de tão real, pode tornar-se uma experiência dolorosa para o espectador que vive da eterna busca pela felicidade, esquecendo-se do misto de alegrias e tristezas que compõe essa brincadeira chamada vida.

Paulo Morelli (Viva Voz e Cidade dos Homens), que além de dirigir brilhantemente ao lado de seu filho Pedro, assina o roteiro que começa acompanhando os inseparáveis amigos Felipe (Blat), Lucia (Dieckmannn), Gus (Vilhena), Silvana (Ribeiro), Cazé (Andrade), Drica (Nowill) e Rafa (Taylor) em um fim de semana de 1992, onde desfrutam de toda plenitude da adolescência. Ambos escrevem e enterram cartas com mensagens que só poderão ser lidas daqui a dez anos. Mas a diversão acaba com a trágica morte precoce de Rafa em acidente de carro, onde Felipe também está, mas consegue escapar a salvo. Depois de um longo tempo de afastamento, o grupo retorna em 2002 ao mesmo lugar para enfim cumprirem o juramento do passado. Buscando refúgios nas saudosas memórias e ainda abalados com sentimento de dor pela perda do amigo, que sempre os seguirá.

No primeiro ato os Morellis retratam toda a energia e otimismo daqueles jovens, conferindo um tom mais leve, perceptível desde a extravagância dos movimentos de câmera, que percorre vários ângulos, focando principalmente no rosto do elenco e suas expressões sorridentes e ativas, demonstrando toda a liberdade presente naquele momento. Não deixando de elogiar o papel da fotografia de Gustavo Hadba (que também fez um ótimo trabalho em Meu Pé de Laranja Lima e Faroeste Caboclo), aproveitando-se de toda beleza da luz do dia para criar um clima repleto de cores, alterando sutilmente na transição para o carregado segundo ato, onde os tons mais escuros e a timidez da câmera ilustram todo o ar carregado de culpas, desilusões e medo que acompanham o estado de espírito daquelas pessoas. Vale destacar também as belas cenas noturnas fotografadas por Hadba.

Interessantíssimo tanto na construção dos personagens, quanto na dinâmica entre eles. Se aproveitando de todos os tipos de cenas para criar para fazer o público embarcar no universo desses indivíduos. Se nos momentos mais descontraídos entendemos perfeitamente o porquê do prazer que eles têm de ficarem juntos, em outros marcados por discussões envolvendo duras e sofríveis verdades são visíveis o quanto eles se conhecem e tem intimidade para jogar esses fatos na cara da outra pessoa. Nada em que não possamos nos identificar no dia a dia.

O escritor Felipe, exibe suas inseguranças na sua preocupação com o tão desejado “sucesso artístico”, uma predominância sobre o que importa de fato, o envolvimento por completo no processo de criação, em que a obra deve ser maior que o próprio autor. Personalidade essa vivida com imensa sensibilidade pelo sempre ótimo Caio Blat, que se destaca a cada momento. Sua esposa Lucia, perambulando por uma tristeza iminente que a cerca, tem os sentimentos da personagem compreendidos pelo público ao simples olhar depressivo de Carolina Dieckmann, que confere toda dor refugiada, ao mesmo tempo uma grande vontade de explodir. Paulo Vilhena também é eficiente ao demonstrar toda a eterna frustração de Gustavo, sempre exibindo o sentimento de impotência diante das coisas, constatado desde o seu olhar envergonhado para a ex-namorada Lucia (interessante a fluidez e sintonia exibida entre o casal no primeiro ato, e agora só a distancia fica visível. Existe coisa mais embaraçosa e triste do que perceber que se tornou um estranho para uma pessoa ao qual já compartilhou tantas afinidades?!) entre por sentir-se responsável pelo fim do relacionamento, até na falha na preparação de um simples almoço para os companheiros.

Maria Ribeiro constrói todos os traços de independência de sua Silvana, ao mesmo tempo em que deixa visível sua frustração por certos momentos não vividos. Já Júlio Rocha e Martha Nowill fazem de Cazé e Drica um casal que conseguem exibir o imenso afeto e companheirismo um pelo outro, apesar das diferenças de personalidade, onde ele se mostra o tipo de pessoa que se acha superior aquele mundo que vive, enquanto ela abraça este mesmo mundo de braços abertos. Curioso que apesar da personagem ser talvez a mais animada do grupo, em uma das cenas faz uma revelação que demonstra com grande impacto que nem mesmo os mais sorridentes estão sempre de bem com a vida.

E se o sentimento pela perda de Rafa que cerca os personagens durante a projeção é compartilhado pelo público, é porque Lee Taylor em seus poucos minutos em tela conseguiu transmitir todo o espírito carismático do rapaz, amante das artes, enxergava na união daquelas pessoas, no carinho daquela amizade, o maior momento de prazer a ser conquistado por um ser humano.

Ainda é de grande prazer identificar metáforas usadas tão bem durante a obra. A mais interessante é a do besouro empacado de costas. Felipe presencia, mas não faz nada pra ajudar. Quando analisado, vemos que Felipe está tão preso àquela situação quanto besouro, e também precisa de alguém para ajudá-lo a sair dessa (situação essa que vocês entenderam vendo o filme). Além da árvore presente ao lado do lugar que as cartas foram enterradas, fazendo um paralelo entre o inevitável processo da natureza.

Não posso também deixar de elogiar a montagem inteligente de Lucas Gonzaga (cujo seu trabalho já havia me chamado atenção nos competentes Dois Coelhos e A Busca), que mesmo sendo sempre sucessivo ao conferir agilidade à narrativa, ao mesmo tempo não deixa passar em brancos diálogos importantes que dão intensidade as cenas, e ainda conta com ótimas sacadas nas transições delas. A bela e eficiente trilha sonora de Beto Villares se encaixa perfeitamente nas sequências que são inseridas, colaborando com a emoção derivada. Parabenizando também a magistral canção “Na Asa do Vento” de Caetano Veloso, que encaixa-se de um modo brilhante no enredo.

Permitindo não só o relato do contraste frio da poesia adolescente com a maturidade da vida adulta, como também abrindo espaço ao humor, tirando sarro do próprio romantismo e ingenuidade presentes na época, Entre Nós é uma experiência fascinante em todos os aspectos que se propõe. E no fim das contas tem grandes chances de acertar no alvo mais perigoso, as nossas próprias lembranças.

Nota: 10/10

sexta-feira, 7 de março de 2014

Crítica: "RoboCop"

Título original:  RoboCop
EUA/ Brasil, 2013, 120 min.
Direção: José Padilha
Roteiro: Joshua Zetumer (baseado no filme RoboCop, de Paul Verhoeven)
Elenco: Joel Kinnaman, Samuel L. Jackson, Michael Keaton, Gary Oldman, Jackie Earle Haley.


"Sensacional."


por Bruno Albuquerque

Fica até difícil falar algo mais sobre o filme, pois todos os mais respeitados sites sobre cinema do país já o fizeram suficientemente bem. Porém, pela minha enorme admiração por José Padilha, não só por ser um realizador magnífico mas por, também, estar abrindo diversas portas para o Brasil em Hollywood, me vejo na obrigação de expressar o que achei de seu primeiro longa-metragem produzido na terra do Tio Sam: RoboCop, o remake do clássico cult de Paul Verhoeven.

O longa de Verhoeven é sensacional. Trazendo consigo uma crítica social brutal (com menções ao gosto extremamente acéfalo da população por cultura ruim e vazia, claras menções à venda da mídia às grandes corporações – os comerciais de produtos imbecis no meio de telejornais é a prova disso – e como as mesmas conseguem controlar não só a política mas a cidade como um todo), o filme oitentista conquistou mais de uma geração inteira de fãs, sendo relembrado até hoje, principalmente por conta de seu icônico protagonista: Alex Murphy, o RoboCop, que nada mais era do que o ideal de homem americano, justo, dedicado ao trabalho e preocupado com a família. O drama vivido pelo personagem é incrivelmente bem trabalhado, paralelamente às críticas sociais já mencionadas, principalmente pela interação com o público antes e, principalmente, depois do evento que quase o mata (e é interessante reparar como descobrimos bastante sobre ele apenas, depois de já ter sido transformado em robô, quando este volta ao seu passado, revisitando sua antiga casa). Porém, com diversos momentos do filme dedicados aos empresários, suas características negativas e como conseguem controlar absolutamente tudo, o foco do filme acabou sendo mais filosófico e questionador sobre o que acontece no mundo de uma maneira geral do que abordar de forma suficiente o enorme potencial do protagonista que tinha em mãos.

Já o longa de Padilha é inteligente ao focar na retratação do lado de RoboCop que não conhecemos: o humano. Assim como no filme anterior, vemos a vida de Murphy antes do ocorrido que o transforma no policial robotizado – com a diferença de que, no original, vemos apenas a vida profissional dele e, aqui, a pessoal e o que o tornam o homem que é se tornam o destaque. Isso ajuda a vivermos melhor o drama do personagem, conhecendo-o mais profundamente e às pessoas que ama (o que só é abordado no de Verhoeven superficialmente) e a, principalmente, sofrermos junto com ele em uma cena angustiante: a em que, após ser atingido pela explosão de seu carro, Murphy observa em um espelho tudo o que sobrou de si (apenas a cabeça, os pulmões e o coração, no caso).



O filme não é uma maravilha inteira, assim como quase toda super-produção de Hollywood: o personagem de Jackie Earle Haley, além de caricato, desperdiça todo o enorme potencial de seu intérprete, que fez um trabalho fenomenal em Watchmen como o anti-herói Rorschach. Alguns estereótipos acabam por levar o filme a caminhos demasiadamente comuns (leia-se: clichês) inevitavelmente: a esposa de Murphy é extremamente unidimensional, assim como o vilão da trama, que pelo menos é interpretado na medida certa pelo ótimo Michael Keaton.

Independente disso, o filme é só elogios – ainda mais se considerarmos a coragem e perseverança de Padilha em exigir do estúdio aquilo que ele queria (o cineasta conseguiu marcar ensaios com os atores antes das gravações, assim como trazer do Brasil parte de sua equipe técnica). As referências ao filme original estão no ponto, surgindo organicamente durante a narrativa, seja na trilha sonora, seja numa breve fala de algum personagem. O figurino do “metade homem, metade máquina, inteiramente policial” é extremamente funcional: quando a empresa que o financiou começa mandar nele e insiste para apagarem de si toda a sua essência humana, o traje muda de cinza esbranquiçado – que lembra muito o do filme original – para um preto quase militar, para, ao final do filme, quando ele reencontra sua família após voltar ao seu normal, retornar em seu cinza claro.

Assim como aborda temas interessantíssimos, como a intervenção militar norte-americana em territórios estrangeiros e a manipulação midiática (o personagem de Samuel L. Jackson é IMPAGÁVEL, e remete muito ao apresentador de TV de Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro), mas, acima de tudo, levanta um questionamento filosófico super interessante: o que é ser um humano? O que nos define humanos? Seria a nossa essência, nossa forma e constituição física... ou nossos pensamentos e sentimentos? Murphy é o meio utilizado pelo ótimo roteiro de Joshua Zetumer para estabelecer a abordagem do tema: quando movido pelo coração, RoboCop age instintivamente e guiado, geralmente, pelo amor que sente à sua família. Quando sua mente é apagada e passa a agir única e exclusivamente como um robô, o personagem segue as diretrizes que nele foram implantadas. E como toda boa ficção-científica, o RoboCop de Padilha acerta em cheio no quesito “usar a ciência para falar da natureza humana”: logo no início da projeção, temos uma linda cena aonde um violonista que perdera as mãos volta a tocar seu instrumento, agora com próteses mecânicas. Um detalhe que pode passar despercebido pela maioria é que, quando este mesmo violonista, que até então tocava uma linda melodia sem problemas aparentes, erra algumas notas isso acontece somente após ele deixar seus sentimentos sobressaírem-se sobre si. É nessa cena em que Padilha nos mostra a segurança que tinha sobre o tema abordado e sua opinião sobre. É brilhante.


RoboCop, de José Padilha, é um filme seguro de si, executado cuidadosa e magistralmente e sendo mais uma bela obra no currículo do diretor brasileiro com o maior potencial cinematográfico atualmente.


"Vivo ou morto... você vem comigo!"

Nota: 9/10

domingo, 2 de março de 2014

Crítica: "Philomena"

Título original: Philomena
Reino Unido/França/EUA, 2013, 98 min.
Direção: Stephen Frears
Roteiro: Steve Coogan, Jeff Pope (baseado na biografia Philomena, de Martin Sixsmith)
Elenco: Judi Dench, Steve Coogan, Sophie Kennedy Clark, Michelle Fairley, Mare Winningham, Barbara Jefford, Peter Hermann, Kate Fleetwood




por Gabriel George Martins

Um tipo de gênero jornalístico que sempre fez sucesso junto ao público foram as "histórias de interesse humano". Geralmente são reportagens que resumem, contextualizam e exploram o valor emocional de um relato, de uma vida. Trazem contos da realidade, narrativas sofridas de pessoas sofridas, prontas a fazer os leitores sofrerem do mesmo modo — se possível, na mesma intensidade.

Mas o interesse humano não se reduz aos jornais e revistas. Extrapola o jornalismo, e alcança a Literatura — arte com a qual as matérias escritas podem se confundir — e a TV (com aqueles montes de programas de auditório sobre casos de família, histórias de vida, testes de fidelidade, etc.). Até o Cinema é atingido frequentemente, com seus "baseado em fatos reais", suas trilhas sonoras lacrimosas, suas interpretações exageradas.

O caminho preferível a esses filmes é sempre o de evitar ao máximo se assumir como "história de interesse humano". Algo que pode ser alcançado com mudanças na abordagem, no tom, no foco, na discussão iniciada. Philomena, novo trabalho de Stephen Frears (Ligações Perigosas, A Rainha), é desses casos em que uma história de interesse humano procura se disfarçar a todo custo, revestindo-se reflexões ideológicas. Decorre que, não atingindo por completo o objetivo, o longa se assume como tal, e exibe alguns dos clássicos clichês do tipo.

Muito provavelmente porque a obra parte da própria construção de uma história de interesse humano.

Martin Sixsmith (Coogan), ex-repórter da BBC e atual centro de um escândalo político, vê sua carreira desandar pouco a pouco. Planeja escrever um livro sobre a História da Rússia, mas não encontra disposição para isso. Sujeito arrogante, ele não tem vontade alguma de escrever matérias de interesse humano. Mas é convencido do contrário pela editora Sally Mitchell (Fairley) e pela história de potencial sucesso de Philomena Lee (Dench, quando velha; Kennedy Clark, quando nova), idosa que há muitos anos teve seu filho vendido por uma instituição religiosa irlandesa, à qual pertencia, a um casal de americanos. Martin e Philomena agora procurarão pelo filho perdido, após tanto tempo, na distante terra dos EUA, enquanto ele tem de lidar com o comportamento superprotetor dela.

Parece qualquer dos muitos filmes produzidos em escala industrial na Hollywood de hoje (poderia ser também na de ontem). Mas o longa se beneficia do roteiro — escrito a quatro mãos por Jeff Pope e pelo próprio Coogan — e da produção majoritariamente inglesa para tentar driblar esse esteriótipo. Funciona em certa medida.

O longa lança luz a um curioso questionamento de preceitos e doutrinas católicas, do mal que elas podem acarretar. A problematização está centrada na figura de Sixsmith, ateu convicto, cujo choque com a fé de Philomena produz o núcleo de discussão da obra. Philomena que, apesar de sofrer com as atitudes ferozes da irmã Hildegarde (Jefford, velha; Fleetwood, nova), aceita naturalmente a culpa que lhe é imputada: ter feito sexo antes do casamento, com um desconhecido, e assim ter engravidado. Sua punição, os trabalhos forçados e a perda do filho, são aceitos na medida em que pode suportar. Mas Philomena quer reaver a criança — agora adulta. E para isso, só pode contar com a ajuda investigativa de Sixsmith. Não obstante, ele a questionará, questionará sua religião e sua necessidade por uma.

Na persona de Sixsmith, Coogan e Pope depositam o inquérito de fundamento ideológico do longa. E, aproveitando o background político da personagem, inserem uma alfinetada no Partido Republicano estadunidense — partido cuja orientação religiosa dos membros, conservadores, termina por influir em políticas científicas, criminais e, sobretudo, sociais. É uma fina ironia que (spoiler!) descubra-se ter sido o filho de Philomena um membro do Partido Republicano e, ao mesmo tempo, um homossexual.

É justamente nesse momento que o longa assume posição crítica aos EUA — na medida em que seu primeiro ato seja um "estudo" sobre a religião predominante na Irlanda, e as consequências disso para a população. Influência, talvez, da parte da produção atribuído à The Weinstein Co.? Se sim, é possível que isso explique também, mais ou menos, o restante das decisões cinematográficas. Algumas delas equivocadas.

Frears, não conseguindo manter o equilibrado clima do longa, descamba para o melodrama forçado em pontos chave. Algo corroborado pela melosa e trivial trilha de Alexandre Desplat, pronta para realçar a emoção de qualquer cena. É quando o filme assume sua vertente história de interesse humano — coisa que o próprio Sixsmith define, em uma fala, como coisas para "pessoas vulneráveis, de mente fraca e ignorantes". Em contraste, o diretor utiliza estranhos expedientes de filmes de mistérios no desenvolvimento da trama. Como se a personagem de Sixsmith, ao invés de um jornalista, funcionasse como um detetive à procura de um criminoso, e Philomena uma vítima sobrevivente, buscando justiça. É uma subversão que soaria interessante, se não negasse as proposições dadas às personagens: um jornalista desiludido, e uma mãe idosa. Frears chega ao cúmulo de inteoduzir um clichê final de filmes de detetive, um velho "tudo termina onde começa" que não desce bem para um drama.

Mas, se o começo é o fim, e vice-versa, então Philomena começar no interesse humano e acabar no mesmo não é de intenso problema. Não sendo um grande filme, mas sendo simpático o suficiente, é bastante possível que algum verdadeiro interesse humano se desenvolva pelo enredo. A dor de uma mãe, de Philomena Lee, é cara ao Cinema como o são muitas outras dores, e não nos cabe defini-la de imediato como desinteressante.

Pelo contrário: tudo se desenvolve no interesse que temos pela vida de outrem. Apenas o sensacionalismo, a exploração desonesta disso é que pode faze-la vida pobre, vazia. Felizmente, Philomena não é assim — embora se aproxime perigosamente da condição. Mais uma vez, não é grande obra. Mas obra decente, eficaz a sua maneira. De interesse humano.

Nota: 7/10

Crítica: "Clube de Compras Dallas"

Título original: Dallas Buyers Club
EUA, 2013, 116 min.
Direção: Jean-Marc Vallée
Roteiro: Craig Borten, Melisa Wallack
Elenco: Matthew McConaughey, Jared Leto, Jennifer Garner, Dennis O'Hare, Steve Zahn





"Não apenas um retrato de sua era ou um drama sobre pessoas que convivem com a AIDS, mas também um filme sobre evolução espiritual."

por Bruno Albuquerque

É incrível como há uma infinidade de filmes sobre pessoas com doenças terminais com o único propósito de emocionar o público, o que acaba prejudicando sua produção e os tornando em meros melodramas. Ao ouvir de diversos amigos que Clube de Compras Dallas era "incrivelmente emocionante e maravilhosamente tocante", imediatamente coloquei um pé atrás ao começar a assisti-lo. Fui esperando um longa com cenas feitas para unicamente comover o público, fazê-lo chorar e, por conseguir isso, convence-los de que é um bom filme (mesmo que talvez nem seja). Porém, me surpreendi: o longa não só utiliza de maneira surpreendentemente original sua temática como, algo que admiro em todo filme que se presta a fazer isso, utiliza todos os recursos apresentados em tela para colocar a narrativa para frente.

Se for feita uma rápida pesquisa pela internet, logo se descobre a preocupação do governo e de diversos sites de saúde em recomendar ao leitor que esteja com alguns sintomas da infecção do HIV para irem logo realizar um exame de sangue, para descobrirem se possuem ou não o vírus. Isso, claramente, é um reflexo da ignorância das pessoas para com sua saúde, que constantemente não ligam para sinais de deficiência imunológica simplesmente por medo do que podem descobrir. Clube de Compras já começa original nesse aspecto: seu principal foco é a maneira com a qual Ron Woodroof, interpretado magnificamente por Matthew McConaughey, encara a doença, começando como a grande maioria ao não aceitar a sua condição e mentindo para si mesmo ao tentar continuar com sua vida normal. E tal mentira é evidenciada quando ele vai até uma biblioteca, para pesquisar sobre o assunto e logo em seguida corre para o hospital, para descobrir como poderia se tratar. E a evolução espiritual do personagem tem início ai.

O roteiro do filme é brilhante e em nenhum momento extravagante, o que auxilia bastante na identificação com o público. O próprio faz questão de desenvolver Woodroof como um cara entregue aos seus vícios, com diversos preconceitos enraizados em si e a sua preguiça intelectual ao aceitar inquestionavelmente a vida sem graça que leva., para, com o decorrer do filme, mostrar sua evolução, ao correr atrás de uma maneira de ganhar a vida que se adequasse à sua atual condição, assim como perde seus preconceitos e se livra de seus vícios. Como já dito no texto, Dallas Buyers é um longa sobre a evolução espiritual, principalmente a de seu protagonista. Matthew McConaughey é de uma entrega impressionante ao seu papel, não só pela sua fragilíssima consistência física, mas por suas expressões de ódio e desprezo, mesmo sendo um homem a beira da morte e de pesadíssima fraqueza. Não demora muito para esquecermos que o que estamos assistindo na verdade é um ator fingindo ser outra pessoa, para aceitarmos que aquele homem que ali estamos vendo é real. O mesmo acontece com Jared Leto, que indubitavelmente levará o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante para casa esse ano, com toda sua carga emocional utilizada para auxiliar seu personagem, assim como para evidenciar todo o drama que vive por conta de sua doença. Destaco também a cena em que este não consegue conter sua felicidade em meio ao seu espanto ao ver Woodroof forçar um amigo homofóbico a cumprimentá-lo - esta que, talvez, é minha cena favorita no filme, pois não mostra o melhoramento de caráter do protagonista pelas suas atitudes, mas sim pela reação das pessoas que convivem com ele (assim como a doutora interpretada por Jennifer Garner, na cena do restaurante).

Atenção: alguns spoilers a frente!

Porém, o longa não é livre de defeitos: após a morte da personagem de Jared Leto, não sentimos a tristeza que o filme queria nos passar. E o único motivo é que não fomos apresentados àquela persona com a mesma profundidade que fomos apresentados ao protagonista. Não sofremos junto com o namorado dela, quando este chora após ver Woodroof chegando ao hospital, pois ele é um personagem incrivelmente unidimensional. Agora nem lembro o seu nome, nem sei se ele fora mencionado em algum momento.

Entretanto, os pontos negativos se limitam a este. A fotografia do filme é certeira ao, assim como feito no sensacional Only God Forgives, determinar cores específicas para determinados estados de espírito vividos pelos personagens: o amarelo, para a vida de vícios de Woodroof (note como a primeira cena do filme, aonde ele faz sexo com duas mulheres, possui a mesma paleta de cores da cena em que ele faz sexo com uma outra mulher, agora no seu escritório). E, próximo ao final do longa, aonde tudo parece caminhar para uma paz estável, e somos inundados por um azul claro, simbolizando a calmaria que está tomando conta do filme.

Com atuações brilhantes, um roteiro riquíssimo e uma temática abordada de forma original, Dallas Buyers Club é um dos maiores merecedores dos prêmios para os quais está sendo indicado no Oscar 2014, e vale totalmente a conferida.

Nota: 9/10

sábado, 1 de março de 2014

Crítica: "Ela"

Título original: Her
EUA, 2013, 126 min.
Direção: Spike Jonze
Roteiro: Spike Jonze
Elenco: Joaquin Phoenix, Scarlett Johansson, Amy Adams, Chris Pratt, Rooney Mara, Olivia Wilde, Matt Letscher




por Gabriel George Martins

De todas as pessoas que conheço, encontrei uma dezena delas — acho — pela internet. Nada de estranho nisso. Falar pessoalmente pela primeira com alguém já foi tarefa complicadíssima para mim. Mas falar pessoalmente com alguém depois de conhecê-lo pela internet me parecia fácil. Pelo menos duas dessas pessoas se tornoram boas amigas, com as quais mal falo pela internet, atualmente; mas com as quais também mantenho conversas bastante razoáveis em pessoa.

Aliás, deixei de ser mais sociável pela internet; agora, é mais simples conhecer alguém primeiro de forma presencial, para depois adicioná-la ao Facebook, trocar mensagens, etc. Fui na contra-mão dos tempos.

Mas afinal, o que é presencial no mundo de hoje? Ignorando barreiras físicas, podemos estar em dois lugares ao mesmo tempo, fazendo duas tarefas em diferentes espaços. Duas ou mais. A modernidade subverte, todos dias, um pouquinho mais de nossa ideia de indiretividade. Tudo é direto, se houver um bom smartphone, um bom aplicativo de mensagens instantâneas e uma boa conexão wi-fi ou 3G. Nestes dias estranhos, os relacionamentos pessoais tornam-se objeto do tempo e do espaço, na medida em que interferem na compreensão do primeiro, e no uso do segundo. O aparato físico é modificado, repensado, um pouco mais, a todo instante, a cada vírgula,

Ela é um dos mais notáveis esforços de compreensão disso. Partindo de um dos temas mais caros à Sétima Arte — uma história de amor —, o longa de Spike Jonze (Quero Ser John Malkovich, Adaptação) se pretende a estudo dos relacionamentos na era sem fio, mas se transforma também numa discussão sobre a própria evolução humana.

Situado no nada distante ano de 2025, o longa nos apresenta a Theodore Twombly (Phoenix), um homem solitário, de poucos amigos, cuja vida se vê atormentada por um processo de divórcio. Ele nada mais tem o que fazer da vida senão trabalhar, ficar pensando na ex-mulher (Mara) e vagar pela cidade. Numa dessas andanças, acaba descobrindo o miraculoso OS1 da Element Software, um sistema operacional de inteligência artificial que promete facilitar ainda mais a vida da população. Comprado o produto, instalado o sistema, Theodore conhece Samantha (Johansson), a voz do OS, uma criação capaz de ter ideias, sentimentos e convicções próprias. E o que seria apenas uma relação de trabalho se transforma em coleguismo. Amizade. Romance.

Nada em Ela pode ser considerado rigorosamente futurista. Nem pelos contornos da cidade, nem pelo tipo de relação mantido pelos humanos entre si. No primeiro caso, uma mistura das Los Angeles e Shangai atuais providencia o ambiente de ficção científica, de um presente sem toda a sujeira e decadência. Inclusive, as linhas do metrô da cidade são perfeitas, e se interligam com fluidez; abrangem até estações de bairros inventados. Mas, porquanto o futuro de Jonze seja mais utópico que distópico, ainda é futuro, na medida em que trata de lugares, pessoas e tecnologias em um ano que não conhecemos. E ainda é ficção científica, já que, não se realizando em nosso momento histórico, a obra nos reflete ao abordar o ápice da "indiretividade" nas relações humanas.

Extrapolação da modernidade, Ela traz um futuro no qual os relacionamentos mal se dão presencialmente. Na rua, as pessoas não interagem entre si: ou estão sozinhas, como Theodore; ou, se acompanhadas e conversando, muitas vezes trazem seguros seus smartphones nas mãos. Afinal, é preciso estar em dois lugares, em dois tempos, em simultâneo, a consciência dividida. Entretanto, cabe repetir a pergunta de parágrafos acima: o que é presencial no mundo de hoje?

Theodore e Samantha namoram; mas isso seria possível? Ela não tem corpo, mas pode sentir. Sentir o amor de Theo, sua delicadeza — até o sexo, numa acepção abstrata, é sentido. Sexo que não demanda corpo. Sinal da modernidade maior não haveria, num mundo como o nosso, onde namoros virtuais, à distância, são comuns, até corriqueiros; onde o sexo é reinventado todo dia, de diferentes formas; onde se aprende que o amor pode ser livre.

Theodore, como nós, ainda não entende nem aceita muito bem tudo isso, não está pronto, apesar de conhecer a fundo o sentimento humano. Ele é praticamente um especialista em relacionamentos: trabalha redigindo cartas de amor para uma agência de cartões (empresa que, de colorida poderia ser o Google). Sua obra comove, encanta, tem apelo literário. Theo compreende o amor. Mas não consegue vivê-lo corretamente, não consegue estar em um relacionamento. Jonze alegoriza a introspectividade do século XXI, de pessoas que, em decorrência de vidas centradas no trabalho e na tecnologia, desaprendem ou se desacostumam a se relacionar com outras pessoas.

Contudo, não é só Theo que sofre disso. Todos parecem sentir algum tipo de desolação diante do desenvolvimento cada vez mais acelerado das relações e da tecnologia — da fusão de ambos. Como se isso os estivesse obrigando a se reinventarem todos os dias, sendo novos e melhores. A amiga de Theo, Amy (Adams), sente o mesmo com seu namorado, Charles (Letscher), incapaz de ver qualidade em suas produções. Amy também recorre a um OS, e também termina por estabelecer um laço de amizade com a máquina-humana.

Buscando ressaltar essa especial sensação, Jonze se esforça para não chamar atenção aos cenários mais que às suas personagens — embora não funcione muito com os planos aéreos. É impossível não reparar na beleza estéril dessas construções, fazendo uma ode velada ao patamar que o engenho humano alcançou, e o contrastando com a miséria emocional das pessoas.

Também é evocativa a trilha sonora, executada pela prodigiosa banda indie Arcade Fire. (Jonze já havia dirigido para o grupo o videoclipe de The Suburbs, que por sua vez é composto por excertos do curta Scenes from the Suburbs, de sua autoria.) Afogadas em sintetizadores, as canções tramitam entre o doce e o "tecnológico". Os sons mais eletrônicos, em específico, ressaltam a onipresença da tecnologia no espaço — e no tempo. Computadores, smartphones, videogames, elevadores, por aí em todos os lugares. Samantha, como eles, em várias localidades — mas não em espaços físicos. Não como pensamos. As dimensões alteradas do que é físico permitem a ela estar em tudo, como o quereriam os humanos de carne e osso.

Samantha é o auge da simultaneidade das relações. Enquanto conversa com Theodore, pode ler diversos livros, conversas com outros OSs e outras pessoas, acumular mais informação do que nós, humanos, somos capazes. Mas nós, demasiado humanos que somos, também buscamos ultrapassar nossos limites, acumular quantidades imensas de informação em pouquíssimo tempo. A aproximação entre o humano e a máquina é clara e perceptível, e não soa exagerado afirmar que a máquina, no contexto do filme, seja o resultado natural de uma evolução de milhões de anos. Ou antes, ela (Ela) é só mais um passo nesse processo, caminhando ao próximo passo, e depois ao seguinte, em velocidade espantosa.

Pode ser feita uma (pen)última pergunta: o relacionamento entre humanos e OSs (máquinas) não seria um meio de escapar ao real, isto é, fugir da natureza humana? Assim, nossa debandada coletiva para as telas dos tablets e perfis de Facebook e WhatsApp não seria a negação do mundo como é? É possível. Mas o real não é uma convenção social. Ele se modifica com o avanço da percepção, com a disseminação da informação e do conhecimento. O que fez Spike Jonze foi entender o fato, e construir sua fábula moderna em cima dele. Jonze aceitou a modernidade, e reproduziu o amor como ele é por estes dias. Somente acentuou-a, ampliou-a para um futuro-presente.

E desse futuro, aonde iremos?

Quem sabe, a um novo nível de modernidade. Porque ela é tudo o que é, a todo momento. Ela se realiza no tempo e no espaço. Em todas as pessoas. Adjunta a eles, avança, sem fim, obscura em destino. Ela é a modernidade.

Nota: 8/10

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Crítica: "Limite"

Título original: Limite
Brasil, 1931, 115 min.
Direção: Mário Peixoto
Roteiro: Mário Peixoto
Elenco: Olga Breno, Taciana Rey, Raul Schnoor, Brutus Pedreira, Carmen Santos, Mário Peixoto, Edgar Brazil, Iolanda Bernardes






"Por seu caráter poético e fragmentado, quase não-narrativo, ainda que pleno de significação, a recepção de Limite deve dar-se em nível de sensibilidade estética e não de compreensão racional."


por Lia Martins

Limite, roteirizado e dirigido por Mário Peixoto entre maio de 1930 e janeiro de 1931, é, de acordo com o cineasta brasileiro Julio Bressane, “o filme mais radical da vanguarda francesa que esta não chegou a fazer”, sendo claramente o primeiro trabalho de avant garde que se realizou no Brasil.

A imagem central da película, a que geraria todas as outras, nos dizeres de Saulo Pereira de Mello, fora uma foto de André Kertézs para a capa da revista Vu - um rosto de mulher de frente, com o olhar fixo e tendo em primeiro plano duas mãos masculinas algemadas. Essa imagem seria reproduzida durante o longa, em inserção não-diegética, gerando uma rima visual forte e expressiva.

A capa da revista, avistada por Mario Peixoto em um quiosque do boulevard Montmartre durante sua estadia em Paris, teria reagido com os resíduos vivos de um forte e recente conflito ocorrido entre ele e seu pai, provocando uma torrente de emoções que ele traduziria em seguida no rascunho do que viria a ser o scenario de Limite. Sobre sua reação à foto, cineasta diz: “eu vi foi um mar de fogo, um pedaço de tábua e uma mulher agarrada”, numa clara antecipação da cena final da obra.

De uma beleza impressionante, a película, por meio de uma fotogenia típica do impressionismo francês, exprime de forma sublime a fina sensibilidade poética e plástica de seu criador, manifestando qualidades técnicas e expressivas raras ao cinema nacional da época, e exibindo uma excelência formal que deriva diretamente do perfeccionismo extremado de Mário Peixoto.

O caráter íntimo e confessional da película - que exibe três pessoas a navegar sem rumo enquanto rememoram seu passado - fica claro em seu fluxo de imagens e emoções, o qual prevalece sobre a narrativa clássica, exprimindo com simplicidade o tema imensamente complexo que perseguiu Mário Peixoto por toda a sua vida: a finitude do homem - o choque entre a consciência de sua mortalidade e a infinitude do universo que o cerca.

Por seu caráter poético e fragmentado, quase não-narrativo, ainda que pleno de significação, a recepção de Limite deve dar-se em nível de sensibilidade estética e não de compreensão racional.

A obra conta com uma trilha sonora incidental extremamente marcante - em grande medida responsável pelo potencial lírico das cenas e sequências - composta pela seleção musical acurada de Brutus Pedreira, guiada pela estética impressionista - constam obras fundamentais de Debussy e Ravel. Mudanças melódicas ou rítmicas são frequentemente responsáveis pela demarcação do início e do fim das digressões dos personagens, bem como por transmitir seu clima de melancolia ou apreensão ao espectador.

Apesar das características avant garde de sua obra, Mário Peixoto buscava inspiração sobretudo em Eisenstein, pelo virtuosismo da montagem, e Chaplin, pelo aspecto poético e habilidade como diretor - características cujo domínio ele demonstra habilmente em Limite. A película traz constantes fusões e sobreposições sutis de imagens, o que contribui enormemente para seu clima fluido e algo onírico.

Tendo sua fotografia assinada por Edgar Brazil, observa-se nela uma constante alternância entre shots fixos de enquadramento rígido, com movimentos bruscos de câmera, e grandes tomadas, extremamente móveis e livres, retratando o mar, as paisagens e as ruínas de Mangaratiba, local das filmagens, como parte da história e da composição dos personagens, com importância comparável à dos primeiros e primeiríssimos planos em profusão ao longo da película. Este contraste ressalta a contraposição entre a prisão existencial exibida no semblante dos personagens - e em sua própria situação presente de quase-confinamento - e a vastidão do mar, evocativa de liberdade: mais uma referência ao conflito que norteia a obra.

Realizado em meio ao clima de otimismo que imperava entre os realizadores nacionais, levando-os a acreditar que se vivia então o apogeu do cinema no país, Limite parecia ser, de fato, o filme que anunciava a modernidade no cinema brasileiro (como a Semana de Arte Moderna de 1922 havia feito em relação às artes plásticas e à literatura).

A euforia imperante entre os cineastas da época, no entanto, baseava-se em duas grandes ilusões: a permanência da crise pela qual passava a indústria cinematográfica norte-americana no fim dos anos 1920 e a possibilidade de convivência das duas formas de cinema - o silencioso e o falado. A história se encarregaria de desiludi-los, e Limite marcaria para sempre o encerramento do ciclo do cinema silencioso brasileiro, anunciando sua derrocada iminente.

Mário Peixoto permaneceria, como pontua Saulo Pereira de Mello, um criador solitário, que não deixou sucessores - apenas admiradores declarados. Limite nunca chegou a ser exibido comercialmente; suas exibições foram raras e predominantemente privadas, mas o filme, como lenda, teve e continua tendo vida longa.


Nota: 10/10

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Crítica: "Nebraska"

Título original: Nebraska
EUA, 2013, 110 min.
Direção: Alexander Payne
Roteiro: Bob Nelson
Elenco: Bruce Dern, Will Forte, June Squibb, Stacy Keach, Bob Odenkirk, Mary Louise Wilson





por Gabriel George Martins

A vida é uma estrada, e isso é um clichê. Um clichê cheio de buracos, placas alertando ao perigo à frente, paradas em lugares abandonados. Mistérios noturnos, desertos marginais, bifurcações. Nas últimas, escolhe-se um caminho a tomar, toma-se-o, e alguém se arrepende disso; mas não há como retornar. Há pouca gasolina. O carro é velho, motor cansado, cansado como o motorista, que procura desesperadamente a chegada, o destino final, sem qualquer obstáculo, bar funesto, posto abandonado ou cidade fantasma. Quando o clichê se aproxima do fim, já nos escapa o porquê da viagem. Tendemos ao esquecimento, à peregrinação absorta, rumo ao último quilômetro de estrada. Mal podemos esperar por ele.

Mal podemos.

No começo de tudo, parece algo impessoal, pragmático, um fazer por fazer. E no final, entendemos a profundidade de tudo. Nos envolvemos subjetivamente com a jornada. Não a vivemos; somos a jornada. Sozinhos ou muitos, procuramos o fim do clichê. E eis que o clichê é findo, com a sensação de que muita coisa ainda nem começou.

A essência de alguns bons road movies está no apercebimento dessa ideia, na aproximação entre a vida e uma estrada. Nessa tópica, que de antiga já é clichê, reside uma proposta de reavaliação pessoal, de revisão de um processo, e até do descobrimento de um improvável porvir. É uma viagem também para o público, testemunha dos percalços de uma ou mais personagens. Testemunha e cúmplice. Testemunha, cúmplice e personagem também, refletindo, errando e evoluindo ao fim com elas.

Alexander Payne (Os Descendentes, Sideways — Entre Umas e Outras) parte desse clichê para expor seu humor melancólico no delicado Nebraska. A simplicidade ronda a produção, deixando a grandiloquência para ocasiões mais apropriadas. Estudo de personagens humildes e decadentes, talvez este recente longa comunique mais facilmente ao público estadunidense. De qualquer forma, não deixa de ser louvável a atitude de Payne nessa que é uma sucessão de aforismos modestos sobre um tempo irrecuperável, em contraste com um tempo ainda nem advindo.

A obra nos conta a odisseia de Woody Grant (Dern), senhor de idade que, após receber um anúncio publicitário pelo correio, pensa ter ganhado 1 milhão de dólares. Forçado pela teimosia e debilidade mental do pai, seu filho, David (Forte), aceita levá-lo até Nebraska para retirar o prêmio. No caminho, passam por uma cidade que fez parte do passado da família, e visitam antigos amigos, inimigos e parentes. (Re)Descobrem, contudo, que esses não há uma divisão clara entre esses três tipos de pessoas, e sopesam as angústias do passado, e toda a história que os trouxe até ali.

O enredo de Nebraska nada tem de inovador. O roteiro de Bob Nelson, aliás, preza pela modéstia, alinhando-se ao tom desenvolvido por Payne no decorrer da projeção. Não existe meio de afirmar, contudo, que isso seja algo benéfico. Um road movie, centrado (mas não retido) nas relações entre um pai e um filho, oferecendo algum conteúdo saudosista, regado a diálogos não muito inspirados. Pouco original, até clichê, o filme perde chances de captar o público já por sua trama, jogando na direção um fardo pesado: desenvolver uma história que não cativa.

Seria maluquice dizer que Payne não o faz da maneira que pode. E, no fim, o diretor, acaba se saindo muito bem na função.

Os acertos se estendem por toda a obra. A começar pela justa escolha do preto-e-branco para fazer seu retrato familiar. Filmando com câmeras digitais, Payne e o diretor de fotografia Phedon Papamichael imprimem um estranho contraste entre o passado (aqui pautado no preto-e-branco) com a modernidade (do formato digital), contraste esse que se justifica no passado perdido em meio ao marulhar dos dias atuais. A cidade de Hawthorne, Nebraska, surge como um relógio estagnado, parada no tempo, preservando costumes e arquitetura de um século que já não pode mais comportá-la. Vemos oficinas, casas, bares, tudo meio esquecido com o passar das décadas — embora nem as oficinas, nem as casas, e muito menos os bares se deem conta disso.

Nesses bares, se amontoam velhos. Somente velhos, nada de jovens. Bebendo e cantando em karaokês, isso é tudo o que esses senhores podem recuperar de um tempo não perdido, mas presente numa forma imperfeita, diante deles, entre eles. Ed Pegram (Keach) vê na chegada de Woody e no boato de sua sorte milionária uma chance de se desvencilhar dessa mesmice, de poder se aproveitar da situação para mudar, já na velhice. A grande maioria dos habitantes de Hawthorne o faz, na verdade, recorrendo a um Woody mentalmente problemático, mas ainda mão-aberta. O erro se encontra nos métodos: todos apelam para ajudas passadas e favores antigos — nunca ocorridos, com efeito. O socorro ao passado só lhes escancara a incapacidade de se modificarem, de abandonarem ultrapassados paradigmas, de deixarem de utilizar arcaicos esquemas de enganação.

Não por acaso, o comentário feito por Woody sobre o Monte Rushmore segue a mesma linha de raciocínio: "Parece inacabado." As "falhas" do monumento são as mesmas falhas morais desses sujeitos. São ambos oriundos de um tempo mais simples, mas não parecem completos diante da modernidade. Não encontraram um fim.

O curioso mesmo é Woody ter dito isso, e não seu filho. Em alguns momentos, David parece ainda mais preso a um tempo que seu pai, e faz odes ao passado — mesmo a um passado recente, com seu apego à ex-namorada. Will Forte, mostrando em sua personagem também cansaço — pela monotonia dos dias, pelos problemas corriqueiros, pela conturbada vida conjugal de seus pais — é a peraonificação da derrota. A ordem natural retorna quando Woody é o derrotado, e explicita suas insanas vontades. O esquisito é que sua lista de desejos inclui apenas coisas novas: um novo compressor de ar, uma nova caminhonete, um novo milhão de dólares.

Além do mais, a memória fraquíssima de Woody não o permite ficar tão preso ao passado como os demais. É um mistério para o espectador desvendar seus pensamentos, seus olhares distantes. Nesse sentido, Bruce Dern parece encarnar o melhor do que poderia se chamar de "lacuna". Sua fala brava, seus olhos perdidos, a abundância dos "What?" após as perguntas dão as características não explicitadas de uma protagonista fatigada, limitada a um tempo por alguns, e a outro por si mesma. Confusa por isso, doente por todo o resto, com uma breve noção de que sua estrada já está próxima do fim.

Sua esposa, Kate (Squibb), por outro lado, surge não como contraponto, mas como ratificação de muitas das características de Woody. Ela é a força motriz de um relacionamento envelhecido — literal e metaforicamente —; é a aceitação do novo, porquanto nega uma pretensa glória no passado. Não obstante seus embates se deem com o marido, é nos parentes que ela se confrontará com o passado. Vendo-se por eles, ela se vê mudada a ponto de não mais adular aproveitadores. É a admissão da velhice em si. E Squibb, nunca simpática, dona de um mau humor sarcástico, oferece no porte as múltiplas facetas dessa adorável coadjuvante.

Com exceção dessas três figuras — Woody, Kate e David —, no entanto, todo o restante (ou a maior parte) das personagens se mostra unidimensional. A identificação entre o comportamento delas e o seu passado é unívoca, mas equivocada. Não sendo movidas por complexos interesses, elas são levadas por motivações únicas, até fatalistas, como se o passado moldasse seus caracteres, e não o oposto. Payne até pode com isso ter pretendido fazer delas um retrato dos EUA, de um pretérito que lhe era grato. Nebraska, como estado localizado ao centro do país, pode ter sido o cenário ideal para esse "ensaio".

E para chegar a esse centro, cruzar o país se faz imprescindível, numa viagem feita de Montana a Nebraska em um carro... asiático. David e seu irmão (Odenkirk) têm carros não-americanos. Uma espécie de rompimento com a essência de muitos dos road movies americanos, cujas rotas são percorridas em Fords, Chevrolets, Dodges, etc. Subversão que encontra oposição nas caminhonetes beberronas de Hawthorne, nas estradas desérticas, no Monte Rushmore. Os carros asiáticos apontam para um comentários sobre a mudança na essência do viver norte-americano; são sinal da modernidade que muitos não sabem encarar. Talvez nem David.

Mas Woody e Kate podem. À sua maneira.

Antes deles, nós — muitos de nós — encaramos essa modernidade com estranhamento. Os jovens a veem com melhores olhos; os velhos, com olhos assustados. Possivelmente porque chega a ser surpreendente que ela venha ao final da estrada. Ela sempre vem. A modernidade nos atinge todos os dias, avançando junto conosco pela estrada, pelo clichê. Mas ela vai em velocidade muito superior. Pois seu carro é mais novo, tem câmbio automático, direção elétrica, menos poluente, e é asiático. A modernidade é asiática, não?

Não nos importa, a princípio. Mas depois a olhamos. Contemplamos. E decidimos que o fim chegou. Deixamos o motor morrer, recostamo-nos no banco. Relaxamos. E deixamos que um motorista mais jovem, num automóvel melhor, assuma o clichê. A estrada continua para ele.

Nota: 9/10

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Crítica: "Trapaça"

Título original: American Hustle
EUA, 2013, 138 min.
Direção: David O. Russell
Roteiro: Eric Warren Singer, David O. Russell
Elenco: Christian Bale, Amy Adams, Bradley Cooper, Jennifer Lawrence, Jeremy Renner, Louis C.K., Michael Peña




por Gabriel George Martins

A arte falsifica a realidade. Apreende o real, transmuta-o e o molda à sua maneira. A arte é algo mais verossímil que a própria realidade, porque é pensada para enganar o público. A realidade, em oposição, se dá por si só, absurda como é — embora quase sempre pragmática. Pirandello, literato, disse ou escreveu — provavelmente ambos — algo parecido, e suas personagens oscilavam nesse limite impossível entre o mundo real e o imaginário, fictício.

O Cinema também teve seus exímios falsificadores. Gente que aprimorou a técnica, com a fusão perfeita entre personagens e mundo (da ficção). Mundo construído à parte deles, a partir deles. Mas mundo verossímil, e personagens também, como exige a arte. Ainda hoje não se pode contradize-lo: um bom filme depende em grande parte do engenho de seu realizador, de seu cineasta. Depende de como os elementos se unirão a fim de criar mundo e personagens verossímeis. O cineasta precisa ser um bom falsificador do real.

David O. Russell é também um falsificador. Da filmografia setentista, de si mesmo. Projeta uma imagem falsa de querido cineasta aos olhos de metade da indústria hollywoodiana, enquanto se concentra em suas trapaças fílmicas, na sabotagem de sua própria pessoa. Não se sabe onde exatamente tem início essa sabotagem: se nos bastidores, com a escalação de um elenco de estrelas para dar charme à produção, ou no minuto inicial de cada uma de suas obras, no primeiro contato com seus mundos improváveis. O. Russell sabota, forja, falsifica. Trapaceia. É. Afinal de contas, é muito adequado que seu novo trabalho, American Hustle, tenha sido batizado por aqui justamente como... Trapaça.

O longa, abarrotado de nomes conhecidos e abrilhantados, ficcionaliza a verídica Operação ABSCAM, que, no fim da década de 70, prendeu dezenas de políticos — entre eles o prefeito de Camden, em Nova Jersey — após uma série de filmagens de situações (forjadas) em que os envolvidos apareciam recebendo propina, em troca de outros favores. Inventando xeques árabes e uma empresa de fachada (a Abdul Enterprises, Ltd.) dispostos a investir na Atlantic City do prefeito Angelo Errichetti, o FBI montou a operação com a ajuda do falsário Melvin Weinberg. Inicialmente, o golpe visava à captura de outros falsificadores, mas o esquema evoluiu para uma investigação sobre corrupção política.

Isso é História. E isto é a história de Trapaça: o falsário Irving Rosenfeld (Bale) e sua amante Sydney Prosser (Adams), notórios criminosos no ramo, são obrigados a colaborar com o FBI quando o agente Richie DiMaso (Cooper) detém a mulher. A operação da qual devem participar, chamada ABSCAM, procura prender outros falsários, mas logo se desenvolve, devido às ideias de DiMaso, em uma caça à políticos corruptos. Não obstante, o primeiro alvo dessa caçada é o prefeito de Camden, Nova Jersey, Carmine Polito (Renner), um homem que deseja reconstruir Atlantic City, mas sofre com a falta de financiamento.

Ao menos O. Russell é honesto em admitir, num letreiro inicial, que apenas "alguns desses fatos realmente ocorreram". Tal sinceridade para com o espectador somente se verifica novamente numa honesta direção de atores. Estes têm relativa liberdade para exercer seu carisma, naquilo que provavelmente é o chamariz e ponto alto da película. Muito embora o diretor-roteirista pareça acreditar que uma atuação tem mais peso quando há um "fucking" em boa parcela das falas. (Ora, e quem se lembra dos "fuck" e suas variações, utilizados em frequência como recurso cômico em seu longa anterior, O Lado Bom da Vida?) E se é melhor pecar pelo excesso que pela falta, O. Russell leva isso a consequências abismais, e exagera com um incompreensível orgulho, fazendo suas personagens rirem (alto) e gritarem (mais alto ainda) como loucos nas sequências que julga mais "libertadoras" ou "decisivas".

Não surpreende que a histérica Rosalyn, personagem de Jennifer Lawrence, o faça. Pega-nos de surpresa, contudo, a descarada inutilidade de tal personagem. A esposa de Rosenfeld, ganhando amplo destaque, é quase supérflua, dispensável para o andamento da trama principal (95%, diríamos). A excessão fica um único momento, não muito distante do final, quando (spoiler!) denuncia os planos de seu marido à máfia comandada por Victor Tellegio (Robert De Niro, ilogicamente não creditado num papel de algum relevo). Parece que O. Russell, outra vez trapaceando com o público, procura dar o maior tempo de tela possível a Lawrence — um fugaz beijo lésbico, e uma inacreditável e alienígena sequência com a moça limpando a casa enquanto canta Live and Let Die são alguns dos segmentos que o cineasta considera indispensáveis ao jovem talento.

Soará contraditório, então, dizer que Lawrence é das melhores coisas do filme? Certamente não. Não mesmo, quando O. Russell submete o espectador a outras experiências tétricas de tão embaraçosas. Cenas musicais como a de Lawrence, por exemplo, se espalham à exaustão, extensas, no decorrer de toda a projeção (com a subtração da cantoria desenfreada, é claro). Nesses momentos, o longa assume postura videoclíptica, enquanto exibe séries de acontecimentos em velocidade, ao som de clássicos setentistas. O. Russell acredita piamente que as canções o ajudarão a compor o clima de filme dos anos 70 pretendido. Até encaixa o logo anos 70 do estúdio no início da película (uma tendência na indústria ultimamente; Argo e Nebraska são alguns dos filmes que o fazem sem tomar conhecimento do nonsense da decisão). Mas nem a primeira iniciativa, nem o uso do logo antigo da Columbia fazem desta obra de 2013 um longa de 1973. Pelo contrário: é moderno o suficiente para ser inofensivo, correto (no mau sentido) e trivial, como muito daquela época evitaria ser.

Inofensivo, sim — seja em sua resposta simples a uma pergunta difícil ("Todos trapaceiam para sobreviver."), dada já no cartaz do filme; seja nas limitações técnicas, na pouca ousadia de O. Russell. Pois, não se contentando em filmar mal, o diretor ainda peca em pontos inacreditáveis. Aqui, a narração em duas vozes (a princípio, um diferencial) se converte num amontoado de explanações artificiais sobre o desenvolvimento da trama — e a segunda voz é simplesmente esquecida após um tempo, o filme terminando apenas com a narração de Bale, em detrimento da de Adams. Ali, a câmera permanece quase irrequieta — e antes fosse com a finalidade acompanhar personagens —; fechando abruptamente nas personagens e movimentando as filmadoras com um frenesi esquizofrênico, O. Russell não dá a dimensão exata das emoções das personagens mais que dá uma sensação de amadorismo.

Nada nos garante, entretanto, que O. Russell não seja um amador com sorte, e contatos. Nada evita que ele burle o sistema para forjar suas pérolas falsas. Em especial esta, Trapaça, se sobrepõe às outras por apontar para interessantes caminhos — todos não explorados ou explorados com a sutileza de um rinoceronte. Se se pretende a homenagem fílmica, Trapaça é um engodo. Se se coloca com estudo de personagem, não sabe o que é estudar. Se se apoia em seus intérpretes, é triste anunciar que atores, por si só, não salvam filmes. Mesmo que suas personagens possuam algo de louvável. Não é bem o caso aqui.

Muitos subvalorizam suas personagens. O. Russell inova ao supervalorizá-las. As personagens dele e de Warren Singer possuem conexão com a realidade, mas são de fato irreais. Na ficção, também não se encontram, beiram à inverossimilhança. A conclusão não é outra senão a incapacidade russelliana de construir um universo coeso e totalmente coerente, que sabota a sim mesmo por suas ações impraticáveis. O. Russell quer ser um bom falsificador, sendo em si um falso cineasta. Mas não se pode trapacear com o Cinema, porque o Cinema já trapaceia por natureza.

Rosenfeld pergunta ao agente DiMaso: "Quem é o mestre? O pintor ou o falsificador?" O pintor, per se, é um falsificador. E o segundo indivíduo a falsificar só executa a farsa da farsa, afinal.

A que classe pertence David O. Russell?

Nota: 4/10

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Crítica: "Capitão Phillips"

Título original: Captain Phillips
EUA, 2013, 134 min.
Direção: Paul Greengrass
Roteiro: Billy Ray (baseado na biografia Dever de Capitão, de Richard Phillips e Stephan Talty)
Elenco: Tom Hanks, Barkhad Abdi, Barkhad Abdirahman, Faysal Ahmed, Mahat M. Ali, Michael Chernus, Catherine Keener, David Warshofsky, Corey Johnson, Chris Mulkey



"Independente da questão de veracidade na maioria dos fatos, funciona como um verdadeiro exemplo de execução, que consegue a proeza de manter o espectador sempre envolvido com os personagens relatados."


por Leo Bastos

Há pouco tempo, estava lendo uma declaração dos tripulantes do capitão Richard Phillips. Em nota eles reclamavam da imagem heroica que o filme passava do personagem central, alegando que na verdade ele era uma figura bem difícil de lidar, sempre mal humorado e egoísta. Bom, não estou aqui para discutir a veracidade dos fatos. Cinema é cinema. Vida real é vida real. Existem liberdades para se adaptar. O que importa é o quanto elas funcionam como longa-metragem. Então não esperem nessa crítica que eu perca tempo comparando as situações, apenas vou discutir enquanto obra cinematográfica. E aqui, o diretor Paul Greengrass (que já havia demostrado sua competência no gênero em filmes como Vôo United 93 e Domingo Sangrento) mais uma vez chama atenção, auxiliado por sua ótima escolha de elenco, transformam esse projeto em uma experiência bastante sucessiva.

O roteiro foi escrito com base no livro A Captain's Duty, do próprio Phillips. Os acontecimentos se passam durante 2009, onde o capitão (Hanks) durante uma passagem pela costa da Somália - região conhecida por forte presença de pirataria - tem seu cargueiro, o Maersk Alabama, sequestrado por piratas somalis, que são liderados por Muse (Abdi). A partir daí, começa a luta de Phillips por sua sobrevivência e dos seus tripulantes.

Nos primeiros minutos de projeção, Greengrass usa para estabelecer os dois mundos que cercaram toda a narrativa. Dedicando-se a expor de forma simples, mas precisa, o cotidiano de Phillips. Em poucos instantes vemos um rápido diálogo de despedida com a esposa (Keener), que já serve pra demonstrar o carinho e cumplicidade de ambos, além de sua postura dedicada de pai de família. Depois acompanhamos seu desempenho como capitão, ao qual mostra uma entrega tão comprometida quanto. Pronto, já está formado o exemplo de pessoa. Com isso, facilmente já teremos a identificação do público, que contribuirá muito para o sucesso da tensão que trará, já que haverá um apego pelo personagem. Em seguida, também se propõe a exibir um pouco da vida dos piratas somalis. Infelizmente não dá tanto espaço quanto o núcleo de Phillips, o que poderia ser bem mais explorado, por se tratar de uma questão bem mais complexa do que parece. Mas fica a intenção, já que ao menos confere sequências que esboçam toda miséria e falta de oportunidades em que vivem essas pessoas, vítimas do capitalismo. Conferindo uma fotografia regada a cores frias que registram todo o caos e ausência de esperança que orbitam nesse lugar. E mesmo sem ir mais a fundo na questão Somália, fica claro que Greengrass não busca julgar as ações dos somalis, que o público mais egoísta pode facilmente os encarar como “os vilões” da parada, mas sim jogar uma grande discussão em tela, com dois sujeitos de personalidade forte, que lutam para defender seus espaços.

Orquestrando uma execução que confere um clima tenso, que sempre mantém o espectador tão aflito, e preso quanto aos personagens. Pra ter uma ideia dos recursos usados pelo diretor, ao inicio o Maersk Alabama é exibido com um navio altamente espaçoso, em planos abertos e expansivos. Quando ocorre a invasão, eles se fecham, e os espaços mais compactos do lugar são explorados, dando uma sensação cada vez mais claustrofóbica. Clima esse que vai aumentando ao passar do tempo, quando a situação vai ficando ainda mais desesperadora e sem saída. Alternando algumas vezes com o velho truque da câmera tremida, mas vale por ser bem empregada, sempre nas cenas certas, que ainda é preenchida em alguns momentos por um silêncio angustiante ou pela eficiente trilha sonora composta por Henry Jackman, tensa em parte do filme, e emocionante, quando é necessário.

Mas todo o brilhantismo do filme não seria suficiente caso não contasse com a dupla de protagonista e antagonista tão bem definidos. Interpretados fabulosamente por Tom Hanks e pelo estreante Barkhad Abdi, ambos apesar de viverem em contextos diferentes, são guiados pelas mesmas finalidades, proteger suas tripulações.

Hanks, ótimo - maravilhoso, fantástico, desculpem, mas é que sou muito fã desse cara, não resisti - como sempre, confere um olhar exaustivo, mas sempre esperançoso a Phillips. Suas expressões revelam toda a tristeza presente naquele momento, sem precisar de lágrimas, embora que um dos momentos finais, o personagem explode todas as suas emoções em uma espécie de “limpeza de alma” diante o fim daquele pesadelo, que parece não ter acabado de fato. E apesar de ser vítima daqueles piratas, ainda consegue se importar com o destino deles, chegando a imaginar que poderia ser seu filho no lugar de algum deles. Mais uma vez voltando àquela imagem poética do herói, que novamente repito, não vai comparar com a realidade.

Abdi também é sucessivo na construção de seu Muse, um homem carregado pelas dificuldades presentes na sua condição de vida, que apesar de toda a fúria presente nos momentos em que demonstra sua autoridade perante seus companheiros, ainda consegue passar certo carisma, com sua fala mansa na maioria das vezes. Sempre tentando lidar com Phillips da forma mais passiva, embora enfrente a ira de Barkhad Abdirahman (Bilal), que carrega uma amargura ainda mais desenfreada do sistema.

Aliás, esse sentimento de inferioridade aos “privilegiados”, como eles mesmo tentam se referir, predomina entre os somalis, deixando a experiência ainda mais interessante. Principalmente se refletido durantes os minutos iniciais que do ponto de vista que os americanos estão mais preocupados com o prejuízo das cargas, ou na simples volta ao conforto do estabelecido lar, como o Phillips, onde retornaram venerados por uma sociedade que de cara os abraçaram e condenaram os somalis sem a mínima reflexão de sua dura e triste realidade, a única que os aguarda na volta, da qual provavelmente nunca saíram. Refletindo também a equipe de resgate americana, que seu único interesse é trazer o capitão de volta, sã e salvo e sem nenhum arranhãozinho, sem hesitar em executar “os sequestradores”, se for preciso.

(ALERTA DE SPOILER) Assim ao final quando Phillips é resgatado, depois do trágico destino daqueles piratas, a emocionante e comentada cena do choro de desabafo do personagem, encarnada com a enorme sensibilidade de Hanks, mostra que apesar de ser um consolo para o público de ver aquele honrado homem livre daquelas situações (ou para a maioria o “mocinho” salvo dos “bandidos”) isso está completamente longe de ser um final feliz.

Nota: 9/10

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Crítica: "Gravidade"

Título original: Gravity
EUA/Reino Unido/México, 2013, 91 min.
Direção: Alfonso Cuarón
Roteiro: Alfonso Cuarón, Jonás Cuarón
Elenco: Sandra Bullock, George Clooney






"Ambição, desenvolvimento e recompensa das melhores usando o melhor que o cinema pode nos proporcionar."

por Bruno Albuquerque 

Ambição. Eis algo que está em falta no cinema – e, principalmente, no hollywoodiano. Ambição é necessária para longas fantásticos, emocionantes e inesquecíveis – porém, deve ser calculada com esmero, pois qualquer mínimo exagero pode prejudicar o produto final. Entretanto, estamos em 2013. Já vimos A Viagem (o longa mais ambicioso – e vitorioso em seu objetivo – do ano até o momento), Star Trek (repetindo sua essência ao apresentar um blockbuster com um “plus” filosófico para o público mais atento e dedicado) e Only God Forgives (mais uma obra-prima de Nicholas Windingn-Refn, diretor de Drive, cheia de metáforas brutais e um exercício de estilo fabuloso). E todos esses lançados na primeira metade do ano. Então, o que ainda nos restava?

Havia a promessa de Gravidade, primeiro filme, após um hiato de anos, de Alfonso Cuarón, diretor do excelente Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban e do excepcional Filhos da Esperança, aonde fixou sua principal característica: planos-sequência intermináveis e com ângulos e movimentos de câmera dos mais improváveis. Seu novo filme, estrelado por Sandra Bullock e George Clooney, prometeu. Muito. James Cameron o elegeu como “o melhor filme no espaço de todos os tempos”. Todos os que o assistiram em festivais o classificavam como “excelente” ou “obra-prima”. Agora, após o lançamento do longa nos cinemas comerciais, vem a pergunta: ele cumpriu? Ele realmente é tudo isso o que diziam ser?

Ele é, sim, tudo o que diziam. E muito, mas muito mais.

Acima de tudo, Cuarón é inteligente. Ele jamais faria um filme por impulso, mudando alguns aspectos durante a gravação ou retocando determinados pontos na pós-produção. Não. Ele o planejou milimetricamente, antes mesmo de desenvolver o roteiro. Percebe-se, por todo o cuidado do longa-metragem em sua precisão ao gerar suspense e, muitas vezes, o pânico, que Cuarón planejou tudo quando tinha apenas a ideia básica do enredo do filme. Digo isso justamente porque, durante os 90 minutos do longa, vemos todas as possibilidades que Cuarón poderia ter imaginado para desenvolver o enredo de seu filme sendo postos em prática: temos a Dra. Ryan perdendo todo o oxigênio de sua reserva; temos a mesma sendo lançada espaço adentro, sem chance alguma de ser resgatada; vemos destroços de satélites passando de raspão perto de si; uma de suas naves sendo incendiada de dentro para fora; o escuro total do espaço sideral encobrindo a protagonista completamente, deixando apenas as luzes de seu capacete visíveis em meio à escuridão; dentre outros. Gravidade vê a inquietação do público como objetivo, e usa de todos os artifícios possíveis para alcançá-lo.

Tendo noção total de que poderia mover sua câmera da maneira que quisesse (já que, no espaço, não há nenhum eixo que obriga a câmera a ficar fixa, por conta da falta de gravidade), Cuarón usa e abusa dos planos-sequência – que se mostram, aqui, de vital importância para a ascensão do suspense. Desde o plano inicial, que dura 8 minutos, passando pela troca, sem cortes, do ponto de vista objetivo ao subjetivo (visão do público, visão do personagem, respectivamente) em uma única cena, e chegando em um interminável, porém genial, take da protagonista relaxando após uma situação tensa. O diferencial: ela está em posição fetal, e um cabo solto da nave ao seu lado, pendendo sob sua barriga, simboliza o cordão umbilical. Brilhante. (Você pode ter uma noção da cena aqui.)

Outro ponto positivo do longa é o seu roteiro: simples, porém profundo. Você sofre junto com os personagens por conhecer suas personalidades, seu problema naquele momento e seus dramas no passado (o acontecido nos anos anteriores da protagonista é o que move suas atitudes, o que a inspira, e isso fica claro durante todo o desastre espacial que é narrado no filme). Ou seja: não só preciso na qualidade técnica de seu filme (a trilha sonora também é fantástica, sendo utilizada como gerador de efeitos sonoros, que não existem no espaço, e fez este que vos fala se emocionar em diversos momentos), mas Gravidade também se preocupa com a forma em que sua trama é explorada. Sensacional.

Surpreendendo o tempo inteiro, tirando o fôlego do público (literalmente. O cinema inteiro suspirava ao mesmo tempo durante minha sessão) e com um final magistral, incrivelmente empolgante e inesquecível, Gravidade é, sim, um dos melhores filmes do ano – e, ouso dizer, da década. Alfonso Cuarón, finalmente terá o reconhecimento que sempre mereceu.

Nota: 10/10

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Crítica: "12 Anos de Escravidão"

Título original: 12 Years a Slave 
EUA/Reino Unido, 2013, 120 min.
Direção: Steve McQueen
Roteiro: John Ridley (baseado na autobiografia 12 Anos de Escravidão, de Salomon Northup)
Elenco: Chiwetel EjioforMichael Fassbender, Michael K. WilliamsLupita Nyong'o, Brad Pitt




"McQueen queria fazer um filme com uma temática que Hollywood ignora - e o consegue brilhantemente."


por Bruno Albuquerque

O racismo existe até hoje, e isso é um fato incontestável. Por mais que seja algo ignorado pela população de uma forma geral, a discriminação por pessoas de etnias diferentes causa não só distanciamento social, mas como depressão pessoal por parte de cada afetado. Porém, tal preconceito tem uma origem extremamente estabelecida: a escravidão de negros, que ocorreu há alguns séculos na nossa história. E, de fato, o tema é extremamente ignorado não só pela população, mas como também por Hollywood. Nota-se, por toda a projeção de 12 Anos de Escravidão, que Steve McQueen estava querendo passar uma mensagem - mensagem, esta, que perdura pelas mais de duas horas de longa, com o único intuito de chocar, informar e conscientizar o público sobre as atrocidades inumanas ocorridas na época da escravatura - e estabelecer um paralelo com os dias de hoje.

Apenas imagine o desespero de, sendo um homem livre, casado e com dois filhos, você ser sequestrado e traficado como um escravo, totalmente desprovido da sua incontestável liberdade da qual sempre desfrutara. Desde o começo de 12 Anos, o filme se propõe a não só retratar esse desespero, mas como traçar um comparativo entre a vida de uma pessoa liberta e uma escravizada. A diferença é tremenda - e McQueen não economiza no teor de realidade para retratar sua história: vemos o protagonista ser enforcado, chicoteado, torturado com tábuas de madeira e tendo que ver vários amigos passando pelo mesmo e até sendo mortos. O longa choca por ser cru - principalmente num plano sequência de esmagar o coração de qualquer um, próximo a sua conclusão -, mas se engrandece ao usar isso como artifício para sustentar a ideia que nos quer passar.

Tecnicamente no filme não há o que reclamar: o figurino mostra o contraste social entre senhores de engenho e escravos - mas, acima de tudo, entre homem livre e homem aprisionado. Notem como os trapos sem cor, sem vida de Platt se contrapõem ao vinho forte das vestimentas que usa antes de Solomon. A fotografia forte e cheia de cores fortes nos momentos alegres (apenas alguns poucos no longa inteiro), é contrastada pelo quase preto e branco das cenas durante a fase escrava de Solomon. Tudo em prol da narrativa: 12 Anos de Escravidão é um filme sobre contrastes sociais, sobre as diferenças sem sentido que existem entre pessoas com cores de pele diferentes.

As atuações são sensacionais: não só Chiwetel Ejiofor como Solomon está incrível - e destaco as cenas em que argumenta sobre a sua liberdade -, mas Michael Fassbender rouba a cena sempre que surge, principalmente em seus momentos de fúria, assim como Brad Pitt, encarnando um simpatizante do abolicionismo que ajuda Solomon no que precisa - e que não a toa se parece fisicamente com Jesus Cristo, já que no enredo do filme ele é o "grande salvador". Também vale mencionar a sensacional interpretação de Lupita Nyong'o, que faz uma Patsey incrivelmente corajosa ao mesmo tempo em que demonstra uma enorme fragilidade, fazendo-se merecer o Oscar de melhor atriz coadjuvante.

Porém, 12 Anos de Escravidão não é apenas elogios: há alguns pequenos probleminhas, como a falta de explicação sobre o tempo da narrativa. Se não fosse o título, jamais saberíamos que Solomon foi chamado de Platt por 12 anos - assim como na cena final há um certo estranhamento no reencontro de Solomon com sua família (sendo que o filme termina sem explicar exatamente como ela sobrevivera sem a sua presença).

Mas, o mais interessante no filme não é a sua preocupação em funcionar como longa-metragem - mas, sim, em utilizar a 7ª arte como um meio de espalhar sua principal mensagem. Como já dito anteriormente, 12 Anos é um retrato da época em que se passa, um veículo para nos mostrar a hipocrisia das pessoas daquela era ("Por que me castigastes, ó Deus? Que pecado cometi?" pergunta o estuprador, torturador e humilhador senhor de engenho após constatar que sua plantação está sendo atacada por uma praga), assim como o quanto sofriam a classe oprimida. Acima de tudo, o filme foi a maneira que McQueen encontrou para gritar o que sempre quis sobre o assunto - e, principalmente, sobre os efeitos que o mesmo gera na sociedade mundial (sim, não só em um país específico), sendo um problema gravíssimo e que repercute negativamente de maneira massiva.

Intimista, direto ao ponto, de carga emocional surpreendente, de uma crueza inesperada, com uma mensagem certeira e objetivos alcançados com sucesso, além de incrivelmente emocionante. Assim, defino em poucas palavras o provável ganhador do Oscar de 2014: 12 Anos de Escravidão.

Nota: 9/10