Brasil, 1970, 85 min.
Direção: Rogério Sganzerla
Roteiro: Rogério Sganzerla
Elenco: Helena Ignez, Otoniel Serra, Paulo Villaça, Guará Rodrigues, Lilian Lemmertz
por Gabriel George Martins
Quantas putas batem ponto todos os dias — e noites — na orla de Copacabana? Quantos moleques de menor descem do morro para assaltar turistas e fazer arrastões nas tardes fervilhosas do Rio? Quantos malandros se metem nos bares do samba, do pagode, de outros desses ritmos, e saem de lá bêbados, a cair, maltratados pelo calor? Quantos pais de santo improvisam terreiros nas favelas, trazendo seu quinhão de cultura renegada para uma periferia esquecida? Quantos usuários de drogas caçam algum local esquecido na metrópole, querendo apenas fumar seu cachimbo de crack ou injetar sua heroína? Quantos gays buscam o amor no Carnaval, enquanto, em todas as outras épocas do ano, são duramente reprimidos, na voz do machismo a gritar: "bicha! boiola! viado!"? Quantos loucos há, largados nas ruas, nos becos, na entrada da comunidade, na sarjeta enfim, imprecando contra qualquer fantasma invisível ao são — sem se dar conta de que, afinal, esse é o fantasma da pobreza, da miséria, da desgraça humana?
Prostitutas, trombadinhas, vadios, macumbeiros, viciados, homossexuais, malucos. Também os traficantes, pichadores, bóias-frias, empregadas, cafetões, autônomos. Todos diferentes, com suas peculiaridades, e todos historicamente jogados no mesmo antro — socialmente, espacialmente. Socialmente, porque relegados ao status de "escória", de gente baixa, de baixa cultura, ou de cultura alguma; tudo aos olhos dos figurões do progresso, do desenvolvimento, a gente fina da cultura alta. Espacialmente, porque atirados para os cantos da cidade, proibidos de ficar no centro, de ocupar o centro, de fazer parte do tal desenvolvimento. Proibidos com política, com polícia, com patrões e impropérios, que os fazem subir aquele monte — e aquele outro — e mais aquele — e depois todos os outros, construindo casinhas frágeis, humildes, ameaçadas. Seja pela chuva, pelo crime organizado, pelo crime desorganizado praticado pelas autoridades. Todos vulneráveis. Esses cidadãos marginais, legatários da escravidão, do êxodo rural decorrente da expansão industrial, da ditadura militar — cujo retorno alguns setores abobados da classe média defendem com incrível veemência —, são todos pobres em posses. Pobres, mas ricos em narrativas, em música, literatura; folclore. Cultura. Serviram de base para estudos sociológicos, canções de MPB, e para o que ficou conhecido como "cinema marginal brasileiro". Tão marginal quanto seus excluídos, em estética, em reconhecimento imediato... Copacabana Mon Amour, quarto longa de ficção de Rogério Sganzerla (O Bandido da Luz Vermelha), é um pulsante expoente do movimento. Um filme que cheira a cachaça e tem gosto de areia. Vidimar (Serra) inclusive sente esse gosto — bem como se deleita com sabor do fogo das velas que apaga em sua boca, em diversos momentos. Ele e sua irmã, a prostituta Sônia Silk (Ignez), moradores de uma favela, vagam por Copacabana compartilhando suas inspirações e desilusões com os cariocas, os gringos, e mesmo com o próprio ambiente. Vidimar é apaixonado pelo dr. Grilo (Villaça), seu autoritário e abusivo patrão, que, por sua vez, se aproveita desse sentimento numa relação tênue, dividida entre a adoração verdadeira e a mera exploração. Dr. Grilo, em específico, surge como representação contraditória da figura do opressor. Enquanto patrão, não hesita em reduzir seus empregados a uma condição moral menos que humana, tratando-os como escravos de sua posse, consoante à sua gritaria: "Sou eu que mando aqui! Sou eu! Sou eu!" Curiosamente, Grilo também se rende, vez ou outra, aos encantos de Vidimar, beijando-o com fogo e o apalpando; não obstante, ele não abdica de sua autoridade, e demonstra-a numa conduta violenta para com o empregado. Grilo é um tipo machista, que, no entanto, se entrega aos prazeres do amor homossexual; e, utilizando o afeto de Vidimar, ele prossegue oprimindo, agredindo, brincando com o carinho deste. Vidimar, contudo, é a antítese disso, o explorado que se afeiçoa ao explorador, mesmo continuando a ser explorado. Algo disso é de igual modo visto em Sônia Silk. Perseguida constantemente por um fantasma incompreensível — girando, frenético, assemelhando-se à dança de algum ritual afro-brasileiro —, ela também se mantém alienada quanto às forças coercitivas que a cercam. Silk é enganada até por sua amiga prostituta (Lemmetz), uma igual, após esta não lhe pagar algo que devia. Mas a opressão ainda se manifesta de maneira menos evidente, com a visão irônica de uma cidade "em progresso" de cima do morro, dos barracos da comunidade, numa distinção clara entre dois mundos num mesmo lugar. O carro de polícia no qual Silk se recosta, sorrindo para os passantes, oferece ainda outra ameaça inevitável (tanto à prostituta quanto à atriz que a interpretou e a equipe de filmagem, pois os policiais condutores do veículo se encontravam num bar enquanto a cena era rodada). Quanto a todo esse sufocamento classista, Sônia Silk só consegue se indignar e reclamar ("Eu tenho nojo de pobre!", "Não aguento mais essa miséria"), sem, com efeito, fazer algo para reverter sua situação. A "Fera Oxigenada" ainda não se mostra por completo. E o fantasma perseguidor, afinal, é o fantasma da pobreza, da indigência, da loucura. O roteiro de Sganzerla parece abraçar essa loucura. O texto — cujo teor subversivo faz pensar na recepção militar e até mesmo pública do filme no período da ditadura — não se contenta em seguir um padrão linear. O enredo de Sganzerla não se engendra no desenvolvimento de uma história, e distribui o foco das ações para cada personagem de forma anárquica. Isso não significa a exposição de historietas individuais, tampouco. A obra enfatiza algo além dos diálogos e narrações em off, embora soe tolo e quiçá errôneo afirmar que Sganzerla dá voz às reflexões de seus caracteres. É muito mais. É a concessão verbal aos pensamentos do próprio autor. Mais: do próprio povo. Sganzerla, porém, faz isso ao seu modo amalucado, e intercala esses insights às falas das personagens, iniciativa de causar estranheza a qualquer espectador. Assim, e embora pareça, não é gratuito o pedido que o vagabundo interpretado por Guará Rodrigues faz a marinheiros estadunidenses: "Money. Money. American friend, money", diz ele, em tom mais afirmativo que inquisitivo. Logo em seguida, após não obter qualquer atenção dos marinheiros, ele levanta os braços e, andando em direção à câmera, dispara: "Qual é o destino do homem na Terra?" Apenas para voltar a repetir: "Money. Money", deixando ao público a decisão de creditar essas novas repetições como uma resposta à pergunta ou somente novos pedidos. As repetições, de mais a mais, têm grande responsabilidade na construção cômica do roteiro. Sônia Silk, em diversas ocasiões, repete como uma louca frases carregadíssimas de valor social ("Eu tenho pavor da velhice!"), que terminam por se humorizar com o atraente e acentuado sotaque de Ignez. Em uma sequência, Sônia, depois de sofrer uma tentativa de abuso de um homem, sai pela rua gritando: "Eu não sou uma tarada!", numa linha que acaba por ser bem engraçada, e triste, ao mesmo tempo; Sônia grita para provar ao mundo que ela não foi a responsável por aquilo — termina por ser um grito coletivo, de todas as mulheres. Mas a repetição verbal não é a única matriz de graça — e insanidade —, uma vez que cenas inteiras independentes entre si acabam bastante aproximadas pela ação das personagens. Não para mais, isso se reflete na trilha sonora de Gilberto Gil, cujas músicas são ouvidas durante a projeção como uma playlist indo e vindo, em eterna reprise (e no modo shuffle). As próprias execuções musicais repetem muito os ritmos e o canto das letras, como neste refrão, que ainda reune as cores tupiniquins ao palavreado inglês: "Yellow green, green yellow, mr. Sganzerla." A junção de elementos diferentes também se dá no modo como a película foi filmada. A locação da Avenida Prado Junior, tradicional ponto de choque entre "tribos" diversas, foi muito utilizada durante as filmagens, e sua essência universal passou para o longa, que retrata prostitutas, domésticos, malandros e malucos convivendo numa mesma área. Consagra-se uma espécie de tópica da "rua que a tudo congrega", e — como me lembrou um amigo após a sessão do filme — isso lembra a proposta parecida da comédia Irma La Douce, de Billy Wilder — na qual prostitutas, feirantes, cafetões e policiais se contrapõem mutuamente numa mesma rua. Vale ressaltar que Copacabana Mon Amour também é uma comédia, e seu riso deriva não só das já citadas repetições, mas também da irreverência das situações, mesmo as mais baixas, pesadas ou sérias — passando pelas leves e descontraídas. Assim, é realmente belo como Sganzerla pode extrair sorrisos dos espectadores com uma simples sequência de gracejos lésbicos num quarto. Muito disso depende do carisma das atrizes envolvidas, e outro tanto da construção envolvente de suas respectivas personagens. Essa comicidade torta é o registro do antifilme de Sganzerla. Afinal, o caos fílmico se instaura em muitas instâncias, e a obra se mostra subversiva até em aspectos técnicos. Para filmar Otoniel Serra correndo pelo calçadão, por exemplo, Sganzerla e o diretor de fotografia Renato Laclete acoplaram a câmera em um capô de Fusca, em detrimento de um convencional travelling. Em contrapartida, no âmbito sonoro, o cineasta preferiu não usar som direto, e optou por dublar as personagens com seus respectivos intérpretes. O resultado (total estranheza) se assemelha ao obtido por Fellini em Satyricon. Concorre para o esplendor cinematográfico de Copacabana Mon Amour muitos outros fatores; alguns próprios do longa, outros extra-filme. Mas o que requer mais de nossa visão não é encontrado nem na ficção, nem na realidade. Dentro de nós mesmos, há que se olhar para o modo como enxergamos o mundo que nos é apresentado. E o mundo, tanto na obra tresloucada de Sganzerla quanto fora dela, se apresenta como cruel para os párias, os renegados — mas também, ora vejam só, para os aceitos, os incluídos. Isso porque o mundo é de fato extravagante, e todos colaboram para fazê-lo assim. Em verdade, Sganzerla foi bem realista em sua desordem brasileira. Só se espera que o Brasil não alcance o regresso. |
Nota: 10/10
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