Brasil, 2013, 79 min.
Direção: Guilherme Valiengo e Marcelo Mesquita
Roteiro: Peppe Siffredi, Marcelo Mesquita, Felipe Lacerda
Elenco: Otávio Pandolfo, Gustavo Pandolfo, Nina Pandolfo, Nunca, Ise Vlok, Zefix, Finok
por Gabriel George Martins
Gilberto Kassab assumiu a prefeitura de São Paulo em 31 de março de 2006, após o candidato eleito José Serra abandonar o cargo para concorrer a governador do estado. Quase imediatamente, em 26 de setembro do mesmo ano, Kassab promulgou a Lei Cidade Limpa, que visava à remoção de outdoors e regulamentação dos tamanhos de letreiros e placas em estabelecimentos comerciais — entre outras medidas. A lei entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2007. Não demorou muito a se descobrir quais eram as tais outras medidas.
Contratando equipes de limpeza terceirizadas, cuja função era verificar e remover eventuais irregularidades, o prefeito pretendia, em tese, limpar a cidade de seu excesso de propagandas e imagens desagradáveis. Faria isso caçando agentes de poluição visual, e exterminando-os. Com isso, uma série de pichações e grafites acabou removida de muros por toda a cidade — sobretudo na região central. Há o episódio dos desenhos de mais de cem grafiteiros, apagados após uma manifestação cultural na Avenida 23 de Maio, em 2009. Não chamou tanta atenção. O caso mais notório de uma dessas remoções, todavia, foi bastante controverso, para dizer o mínimo. Na mesma 23 de Maio, em 2008, parte de um enorme grafite em duas partes foi completamente apagada com tinta cinza. Medindo mais de 700m2, o trabalho fora realizado em 2002 pelos artistas Nunca, Nina, e Os Gêmeos, entre outros. A outra parte do trabalho, no outro lado da via, permaneceu intacta. A prefeitura alegou que tudo não passou de um erro dos terceirizados, e que procuraria resolver a questão. O grafite foi autorizado pela mesma prefeitura ainda em 2002. Porém, como afirma Nunca a certa altura de Cidade Cinza, "não existe erro de 700m2". O documentário relata o processo de pintura de um novo mural no mesmo local do anterior, após a pressão pública e midiática. A prefeitura se viu obrigada a permitir a elaboração de um novo grafite na Avenida 23 de Maio. Para a tarefa, foram chamados, além dos Gêmeos — foco da obra —, os artistas Zefix, Finok, e os antigos colaboradores, Nina e Nunca. Em meio a isso, vemos a ação de um dos grupos de limpeza terceirizados, vasculhando a capital em busca de "desenhos irregulares". Acompanhar essa equipe de limpeza, afinal, parece ser um expurgo de todas as nossas próprias convicções quanto ao que é arte, e o quanto isso se relaciona a questões classistas. Entre os funcionários, há negros, há brancos, há gente humilde. Há inclusive um trabalhador que admite ter pichado muito na adolescência, tendo parado apenas depois de levar inúmeros esporros da polícia. Mas em que a polícia poderia contribuir, distribuindo puxões de orelha (muitas vezes literais), sujando o corpo e a roupa dos pichadores com sua própria tinta de spray? É uma questão mais ou menos pendente, um tanto esquecida na breve narração do funcionário. Só sabemos que ele parou de pichar porque cansou de ser pego pela polícia. Não conhecemos outros detalhes de sua vida, mas o observamos em seu atual emprego: terceirizado, limpador de grafites e pichações. A maior parte dos funcionários trabalha usando um uniforme azul, à exceção mais clara do motorista e do coordenador do grupo — este sempre vestindo leves camisas sociais. Sujeito de fala mansa, rápida, até amistosa, ele expõe suas opiniões sobre as pinturas de rua, que surgem em número incontável pela cidade. Ele chega a dialogar com a equipe de filmagem diversas vezes, procurando por uma alguma ratificação: "Vocês acham que isso é arte?" E não demora tanto a perceber que os critérios utilizados para apagar os desenhos nos muros partem exclusivamente dele. O coordenador age como um juiz estético, tomando decisões em nome de toda uma população, preservando o "belo" e apagando o "feio". A analogia funciona também se pensarmos no eventual censor abrigado na figura do homem. Como um agente da ditadura, ele tem uma vaticinada autoridade para validar ou não qualquer obra. Ele pode inclusive válidá-las parcialmente, como de fato o faz, ao ordenar o cobrimento de partes de desenhos, deixando outras partes ainda intactas. A intermitência entre o cinza omissor e os grafites legitimados nos muros lembra as enormes lacunas em jornais de grande circulação durante o regime militar (lacunas muitas vezes preenchidas por receitas de bolo). Daí, o longa se bifurca em duas discussões opostas, mas não díspares. A primeira, e mais evidente, se relaciona ao âmbito artístico/estético das manifestações visuais urbanas. Embora adote o pressuposto de que as pinturas dos grafiteiros devem ser reconhecidas como arte — sendo parte de uma visão particular, e mesmo assim abrangente, sobre a metrópole —, Cidade Cinza é auto-suficiente o bastante para suscitar uma velha discussão: qual é o limite entre arte e vandalismo? Parece fácil separar uma coisa e outra — geralmente enquadrando o grafite no campo da arte, e a pichação no campo do vandalismo. Mas quando os próprios Gêmeos elevam, de modo não tão claro, mas perceptível, a pichação àquele patamar, nos primeiros relatos do documentário, a questão deixa de ser simples. Afinal, a pichação é, como muitos grafites não reconhecidos pelo governo, pelas elites, uma manifestação marginalizada acerca de algum ponto de vista. Mesmo que esse ponto de vista se mostre tão somente na assinatura estilizada de um jovem em um muro qualquer da periferia. Há uma lógica de demarcação de território, ou de desejo por atenção, reconhecimento, implícita aos rabiscos de spray. Mas, então, nos deparamos com os critérios estéticos: aquilo é bonito? Se é, é para quem? Faz sentido suprimir com cinza (ou branco, azul, vermelho...) as pichações, uma vez que, de acordo com um dos entrevistados — e com o consenso mais geral —, a pichação se renova? Faltam, porém, depoimentos para o melhor aprofundamento — ou aprofundamento completo — nos argumentos estéticos; sobressai aí a mais sensível falha na direção de Valiengo e Mesquita: a exploração de opiniões envolventes e relevantes, mas todas coincidentes entre si. Não há a procura por pareceres opostos, exceto se eles surgem de forma caricata, como no caso do coordenador da equipe de limpeza. E seria, por exemplo, de extremo valor a opinião de algum membro da prefeitura sobre o assunto, expondo suas convicções quanto aos critérios utilizados para as limpezas. Valiengo e Mesquita preferem suspender a dúvida no ar, concedendo à imaginação dos entrevistados e do público as motivações ocultas. Não obstante, parece válido dizer que elas se apoiam, em fundamentos eufóricos e disfóricos. Possuímos, muitos de nós, o falso juízo de que as pichações, como representação feia, são amplamente execradas, e os grafites, bonitos, são em geral aceitos. Mas os grafites e grafiteiros não-autorizados sofrem da mesma perseguição impiedosa que os piches e pichadores. E o que se percebe, com o filme, é a admiração dos artistas autorizados pela proibição; em certo momento, vemos Nunca e Os Gêmeos escaparem da produção do novo mural para cobrir o muro de um viaduto com desenhos menos trabalhados, mais vulgares — muito mais próximos de pichações. A atitude conota o respeito pela marginalidade primordial do grafite e da pichação, e pela ilegalidade de suas primeiras criações. Pois, se artistas internacionalmente celebrados como Nunca ainda fazem desenhos irregulares por aí, muitas vezes acabando apagados, que dirá o trabalho de um anônimo? O desafio à lei se mostra um desafio a todas as leis, um questionamento da justiça por trás de cada uma delas. Justiça para quem? "Até que ponto a arte é uma sujeira para ser combatida com uma Lei Cidade Limpa? Arte suja a cidade?", arguiu Nina, quando do apagamento do mural original. É o rascunho de um comentário social já presente na discussão artística. A Arte pode ser uma representante social, e o combate a ela seria o combate a classes sociais menos favorecidas (porquanto o grafite e a pichação são, a princípio, expressões menos elitistas). No vocabulário popularesco e enxuto dos grafiteiros percebemos as marcas de uma arte comprometida com uma visão de mundo diversa, por exemplo, daquela de artistas plásticos de renome, oriundos da pintura em tela. (Valiengo e Mesquita tornam a derrapar tentando enfatizar precisamente isso. Muito tempo é perdido com diálogos triviais entre os grafiteiros, conversas que aparecem como mera curiosidade e denotação de uma familiaridade entre as artistas. Não é, contudo, excitante ver e ouvir todas essas falas.) A arte do grafite (e, possivelmente, da pichação) é algo engajado por natureza, mesmo seus cultores não se dando conta disso. E se se assume como tal, procura fazê-lo disfarçadamente. Quando é perguntado se uma figura específica do mural representa o prefeito, Nunca dissimula, diz que é coincidência. O engajamento da arte urbana se dá pelo modo como é expressa: na rua. Pois, se desde a década de 90 a cidade vive um processo de desocupação das vias expressas, com a fuga das pessoas para centros ditos mais "seguros" — mais reclusos, com certeza —, o grafite se posiciona em consonância à ocupação da cidade, à exposição de vida em suas ruas. A arte — cinema, literatura, pintura, etc. — migrou da rua para shoppings, livrarias megastore, museus; o grafite se coloca no movimento inverso, e torna inclusivo o exclusivo. O documentário salienta isso com seus depoimentos; mas mais fortes que estes são as imagens, e nos causa algo de irônico presenciar os mesmos grafiteiros autorizados desenhando em muros sem consentimento do governo. Abdicam da exclusividade para adotar a inclusividade, tornando-se ilegais como tantos outros artistas reprimidos. Outras imagens provocam igual curiosidade. Talvez Valiengo e Mesquita nem se deem conta, mas algumas de suas imagens são evocativas o suficiente para estabelecer profundas discussões. Especialmente sobre essa mesma inclusão: num detalhe, notamos de relance um dos grafiteiros vestindo uma camisa da banda punk NOFX, quando o esteriótipo consagrado desses artistas os pinta como adeptos ímpares da cultura hip hop. Eles o são, não se deve enganar; mas a verdade é que a variedade cultural se mostra neles, tanto quanto se mostra numa população de 10 milhões de habitantes. Essa diversificação chega a extremos em outro instante, quando a câmera passeia brevemente por uma praça, capturando um mendigo e um policial, grupos radicalmente opostos, num mesmo quadro. Entre esses deslumbrantes acertos, a dupla de diretores erra outra vez ao empregar uma estrutura irregular para o longa. Quebrando-o na metade, eles se aproveitam de um relato simples para puxar uma longuíssima dissecação da carreira d'Os Gêmeos, com menções aos outros grafiteiros. Inserindo irritantes animações que simulam efeitos da pintura em muros, a sequência se estende por tediosos minutos, enquanto temos a sensação de que tudo aquilo poderia ser eventualmente encaixado no decorrer da obra, de forma bem mais fluida. Apenas na volta à repintura do mural, mergulhamos novamente na história, até conferirmos o seu desfecho. O novo painel da Avenida 23 de Maio foi entregue no dia 21 de dezembro de 2008. O evento contou com a participação dos artistas responsáveis, de jornalistas, o presidente da Associação Comercial de São Paulo — financiadora do trabalho, junto à prefeitura —, do arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Pedro Scherer, e do então prefeito Gilberto Kassab. Dom Odilo ressaltou as qualidades de Kassab, e o bem feito por este à cidade. Quase nos esquecemos de perguntar por que a presença de um membro da Igreja era importante ali, em meio a tantas outras dúvidas: estaria a arte de rua salva a partir dali? A cultura dos muros sujos permaneceria intocada, para a apreciação de cada paulistano? A voz popular ganharia mais força? Na ocasião, Kassab informou que nenhum grafite voltaria a ser apagado na cidade. A promessa não foi cumprida. A administração de Kassab, inclusive, assumiu posturas cada vez mais higienistas, chegando ao ponto de cogitar proibir a distribuição de sopa a moradores de rua, e expulsar viciados da Cracolândia com forte aparato policial. Modificando alguns aspectos dessa política, a atual administração de Fernando Haddad não mudou tanto isso. Grafites e pichações prosseguem sendo apagados por aí, para o aplauso de umas classes, e desespero de outras. Para a arte, ainda resta a insanável pergunta: qual a beleza disso tudo? E se há, o que ela representa para a metrópole — as metrópoles, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte...? De certo, só há os desabafos surdos dos excluídos, e as confissões sinceras das vítimas com alguma plateia — como Ise Vlok, afirmando: "A gente é muito pobre de cultura pra apagar a cultura que tem na rua." Algo assim só poderia sair da boca de quem já sofreu com muitos erros de 700m2. |
Nota: 8/10
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