domingo, 12 de janeiro de 2014

Crítica: "Álbum de Família"

Título original: August: Osage County
EUA, 2013, 120 min.
Direção: John Wells
Roteiro: Tracy Letts (baseado na peça August: Osage County, de Tracy Letts)
Elenco: Meryl Streep, Julia Roberts, Ewan McGregor, Margo Martindale, Chris Cooper, Abigail Breslin, Julianne Nicholson, Benedict Cumberbatch, Juliette Lewis, Sam Shepard, Misty Upham


"Fugir de seus parentes é afastar-se de si mesmo."
(Petrônio, Satiricon)

por Gabriel George Martins

Cada homem ou mulher na face da Terra mantém variados graus de relacionamento com outrem: um amigo ou amiga, um namorado ou namorada, um colega. A manifestação coletiva desses relacionamentos, não obstante, constitui uma família — que não necessariamente se forma apenas por parentes. Família abrange os seus, aqueles escolhidos para desenhar um círculo de afinidades. Mas há um famoso dito popular que contesta a afirmação, dizendo mais ou menos o seguinte: "Família a gente não escolhe." Nesse caso, obviamente, a frase se refere àquela família mais comum, àquela à qual já nascemos pertencendo, e não podemos nunca deixar de todo, pois "fugir de seus parentes é afastar-se de si mesmo." A família é uma das expressões máximas da individualidade de cada um.

Talvez não possamos mesmo escolher qualquer tipo de família para nós. Uma família feita de amigos e amigos de amigos, por exemplo, pode não ser resultado de uma escolha individual, mas fruto de um fato que se delineou com o correr do tempo e da convivência. As afinidades surgem, e se consolidam — e então surge uma nova "família". Com os parentes, no entanto, tais afinidades podem não ser tão claras. Podem também sumir no decorrer dos anos, nunca chegar a aparecer, ou nem existir. E, se a família é a instituição sagrada por excelência, como o conclamam grupos religiosos ou moralistas por toda a parte, sua sacralidade é logo posta abaixo pelas contradições (inevitáveis, às vezes) entre seus membros, inerentes a si mesma.

Especialmente se se toma por amostra uma família que se ergueu sobre esses mesmos princípios religiosos e moralistas. A estrutura dessa instituição se pauta nas convenções do passado, reproduzidas geração após geração. A edificação, contudo, não pode resistir aos desafios impostos pela chegada dos novos tempos, capazes de trazer à tona problemas já bem antigos. É como o caso hipotético de uma família do Sul (ou Meio-Oeste) dos EUA. É como o caso dos Weston.

Não é preciso avançar muito na projeção de Álbum de Família para perceber como os Weston são utilizados na categoria de figuras representativas de um Sul estadunidense moralmente falido e desesperançado. A sinopse mesmo traz parte dessa tônica: quando o patriarca da família Weston (Shepard), um literato meio desiludido, desaparece de vista, sua esposa Violet (Streep, em interpretação iluminada) chama suas filhas Barbara, Ivy e Karen (Roberts, Nicholson e Lewis, respectivamente) para lhe fazerem companhia. Essas mulheres trazem consigo suas famílias — ou o que podem chamar de uma. E, enquanto cada uma tem de resolver seus próprios problemas internos, também devem lidar com a deterioração física e psicológica da mãe, viciada em remédios, e antigas questões de família.

É importante salientar, porém, o quanto essas "questões" influenciam nos atritos de cada núcleo familiar. Em se tratando da personagem de Roberts, nota-se a permanência de traços bastante específicos do caráter da mãe vivida por Streep. Isso fica claro em uma sequência, já próxima ao final (sem spoilers), na qual, procurando se defender de uma acusação feita por Ivy, Barbara diz ter sido culpa da mãe o ocorrido, ao que a irmã logo retruca: "Que diferença faz?" Há uma certa fúria inerente em Barbara, um jeito desbocado, que não se rende nem mesmo à presença de sua filha de 14 anos (Breslin). A menina, uma rebelde, assim como Barbara o é para com Violet, recebe alguma parcela de culpa por suas transgressões, dividindo a autoria dessas faltas com o pai (McGregor) aos olhos da mãe. Mas Barbara não é capaz de reconhecer a sua própria contribuição no processo de alienação da filha, assim como Violet é incapaz de reconhecer o erro no tratamento de Barbara.

Violet, ademais, não parece se importar com muitas coisas — ou nem se dá conta delas —, não hesitando em pronunciar aos quatro ventos certas "verdades" capazes de ferir os sentimentos dos outros integrantes da família. Mas, também, pessoas que não são membros dos Weston acabam vitimadas por suas declarações, como a empregada da casa, Johnna (Upham). Algumas falas de Violet são carregadas de um racismo latente, porém não menos ofensivo — o pó de uma História marcada pela exploração escravocrata do Sul e pela jornada ao Oeste, a conquista dos territórios indígenas (Johnna é descendente desses indígenas). Em simultâneo, o restante da família, tão impregnado de ideias retrógradas quando Violet, desdenha do vegetarianismo da filha de Barbara — e outra vez a menina sofre, com (atenção, spoiler!) a insinuação de sua tia Karen de que a tentativa de assédio da qual a jovem fora vítima haveria sido, em parte, provocado por ela (algo aceito quase que passivamente pela mãe da garota).

Esses detalhes todos constituem ferramentas, importantes ferramentas para a revisão, e consequente destruição, dos valores familiares sulinos nas mãos do roteirista Tracy Letts (cujo texto adapta uma peça homônima de sua autoria). Letts se utiliza desses artifícios, cada nuance discreta no comportamento de suas crias, para fazer seu comentário do Sul, carregado de humor negro e uma dramaticidade apreensível de cada situação. Letts — autor ainda do roteiro de Killer Joe — Matador de Aluguel (também baseado em uma peça sua), outra história sobre a decadência de uma família sulina — parece ter uma bola de demolição em seus textos, à qual usa a fim de demolir coisas já meio demolidas.

Toda reunião dos Weston termina em uma discussão ou desentendimento, e Letts se aproveita disso para traçar um panorama do Sul e declarar a falência de seu sistema familiar. Apenas para nos darmos conta de que a família já estava arruinada antes. Não à toa, as personagens passeiam por paisagens destruídas. Karen retorna de um passeio ao forte com seu noivo dizendo à família que não conseguiram visitá-lo porque este havia sido desmantelado. Em outros momentos, o público se vê diante de imagens de lugares meio abandonados, placas enferrujadas, e de fotografias dispostas por todo canto da residência dos Weston — sempre retratando a glória (aparente) de um passado que em nada corresponde ao fracasso da atualidade.

Mas nem tudo em Álbum de Família se mostra cruel e mordaz, como o pretende Letts; e isso se deve ao seu diretor. Se, em Killer Joe, Letts teve um William Friedkin conduzindo seu trabalho num crescendo de suspense e controvérsia, ainda mantendo o tom ácido-cômico do roteiro e levando a película a um desfecho chocante — o homem da vez, John Wells (A Grande Virada), prefere investir no melodrama. E, diga-se, num melodrama que compete com a corrosividade de Letts. Apostando em planos que valorizam o choro das personagens, em detrimento de toda uma contexto que as cerca, Wells busca o choro do público, numa ação tipicamente spielbergiana. Inclusive, sua opção de subir a dramática música de Gustavo Santaolalla em situações-limite soa formulaica em alguns pontos (embora acertada em outros). Mais: não se contentando com sua opção pela lágrima em demasia, Wells escala um grande elenco do qual não fará uso pleno. Benedict Cumberbatch é subaproveitado em seu papel, surgindo no meio do longa apenas para desaparecer inadequadamente em algum ponto; além disso, sua personagem é desenvolvida de modo a implorar a compaixão do espectador, quando todas as outras não o procuram em instante algum.

Por sorte, leva a melhor a mente mais criativa por trás da obra; Letts se sobressai, e, não obstante o comando de Wells diminua o impacto do texto, o filme permanece forte, permeado de temas complexos e trabalhados de maneira salutar. Letts e Wells, juntos, afinal de contas, pintam um retrato elaborado da vivência em família, dos momentos difíceis de uma, da sensação de se estar em uma — e depois bagunçam-no com a herança de anos e anos de passado sujo, empoeirado, guardado num velho álbum de família a que só seus membros têm acesso. Nós, em nossa natural curiosidade de espectadores, queremos dar uma espiada nesse retrato e nesse álbum, mas os membros da família não têm esse desejo. Há o medo de que, olhando para o passado, descubra-se a verdade sobre o presente. É um medo comum; nós também o temos.

Nota: 8/10

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