terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Crítica: "O Lobo de Wall Street"

Título original: The Wolf of Wall Street
EUA, 2013, 179 min.
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Terence Winter (baseado na autobiografia O Lobo de Wall Street, de Jordan Belfort)
Elenco: Leonardo DiCaprio, Jonah Hill, Matthew McConaughey, Margot Robbie, Jean Dujardin, Rob Reiner, P.J. Byrne, Jon Favreau, Kyle Chandler


"Scorsese revela estar em ótima forma com um filme que não só se adéqua ao seu 'estilo', mas também se torna memorável pela sua competência cinematográfica, filosófica e por suas tiradas humorísticas sensacionais"


por Bruno Albuquerque

Há certo tempo, fizeram uma votação entre os diretores mais renomados e ainda em atividade no cinema mundial para saber quais eram seus filmes e realizadores favoritos de todos os tempos. Cidadão Kane, Um Corpo Que Cai, entre outros filmes foram citados - e geraram uma competição acirradíssima. Porém, na hora de escolherem o diretor, a votação foi quase unânime: Martin Scorsese foi citado por quase todos, seguido por Stanley Kubrick. E se houvesse alguém que ainda considerava o experiente cineasta apenas pelas suas obras antigas mais famosas, agora tem novos motivos para idolatra-lo: O Lobo de Wall Street não só lembra um dos seus mais famosos filmes, tanto narrativa como tematicamente (Os Bons Companheiros, para quem não sabe) mas como também é original, hilário e cumpre extremamente a sua missão de nos passar determinada imagem dos personagens semi-fictícios ali retratados.

Mas não demos todo o crédito para o Scorsese. O roteiro do filme, escrito brilhantemente por Terence Winter, se destaca pelo seu bom humor, personagens incrivelmente bem desenvolvidos (note a evolução de caráter de Jordan Belfort, comparando suas cenas quando ainda iniciante no ramo e no final do longa, após passar por maus bocados) mas principalmente pela sua mensagem: os personagens retratados são desprezíveis, e isso fica claro em MUITAS cenas (como Belfort transando com a tia de sua mulher, traindo a mesma com diversas mulheres na véspera de seu casamento, tirando sarro de pessoas das quais está prejudicando financeiramente e incentivando seus funcionários a serem tão ruins quanto ele), justamente porque o filme faz questão de nos fazer odiar aqueles seres humanos, de expor a sua natural maldade e escrachar sua malévola ingenuidade perante as diversas atitudes patéticas (e até constrangedoras e perigosas, como a cena em que Belfort quer fugir de casa com sua filha pequena) que cometem. Entretanto, o mesmo roteiro utiliza outro recurso inusitado, porém extremamente funcional , para expor tamanha estupidez em forma de gente: o humor. Colocando os personagens em situações patéticas - como Belfort tentando voltar para casa de carro após ter uma overdose -, o roteiro é eficaz em agradar o público ao gerar risadas quase incessantes, mas também de sempre nos lembrar de quem estamos rindo - e de todas as atitudes ruins que aquelas pessoas cometeram. Destaque para o discurso de Belfort, quando tenta anunciar sua "aposentadoria", onde ele ameaça demonstrar um arrependimento para, em seguida, deixar claro que ele não presta e que jamais irá mudar, simplesmente porque aquilo o faz se sentir bem.

E não é só o roteiro do filme que é excepcional em sua composição, desenvolvimento e eficácia: a direção de Scorsese, pra variar um bocado, é precisa, certeira e extremamente inteligente. A começar pelo uso das cores: extremamente sutil, o diretor as usa para nos mostrar a evolução e, as vezes, o estado de espírito dos personagens. Por exemplo: notem como, assim que começa a trabalhar, DiCaprio surge em cena usando ternos cinza claro e, logo depois de começar a praticar suas vendas criminosas, começa a utilizar ternos azuis escuros, algumas vezes até negros. E não só isso: reparem na primeira reunião da Stratton, com alguns poucos empregados, no galpão extremamente espaçoso aonde começam seus trabalhos. A cor predominante é o azul, não só no paletó do protagonista mas como no plano de fundo e nas janelas e portas do escritório novo deles, que surge alguns minutos após esta cena. Além disso, Scorsese também é mestre ao brincar com a narrativa do filme, com narrações em off de múltiplos personagens retratando seus pensamentos, além de quebras narrativas sensacionais, como Belfort corrigindo a cor de seu carro na sequência inicial do longa e, próximo ao fim, quando ele é preso durante o comercial de seus novos serviços, agora como palestrante motivacional. Também é interessante ressaltar as metáforas que o diretor utiliza, principalmente a em que, ao usar cocaína para recuperar seus sentidos, Belfort assiste ao Popeye comer sua icônica espinafre, na televisão.

Nas atuações, nem precisa dizer que o destaque é dele: Leonardo DiCaprio destrói em todas as cenas em que surge, sendo bastante difícil eleger a melhor de todas. Mas destaco a cena do barco onde ele conversa com um agente da polícia; a em que ensina a seus sócios como enganar um cliente; quando ele tenta se recuperar de uma overdose repentina; quando seu barco naufraga e quase todos os seus discursos para seus funcionários na empresa. Todas em prol do desenvolvimento do personagem, que age quase como um psicopata. Jonah Hill também está sensacional, incorporando um sujeito desajeitado que tenta bancar o nerd, mexendo em sua voz, fazendo caretas e usando sempre um óculos enorme, numa falha tentativa de esconder quem realmente é. Outro que se destaca é Kyle Chandler, que pouco surge em cenas mas que demonstra um carisma e talento enormes - assim como Matthew McConaughey, que nos faz sair do cinema batendo no peito e cantarolando a musiquinha que interpreta no começo do longa. E isso serve para vocês terem uma noção de como suas poucas cenas são sensacionais: após três horas de filme, você se lembra de determinada cena lá no começo, justamente por conta da carismática e inspirada atuação de determinado ator. Simplesmente brilhante.

E, por fim, o que O Lobo de Wall Street tanto tenta passar para seu público não é um longa extremamente simpático e divertido, mas sim que as pessoas más são idolatradas e as boas passam despercebidas perante as outras. Percebam toda a glória que Jordan Belfort recebe, principalmente após sair em um jornal que fala mal dele - e notem a brilhante cena em que o agente de polícia, vivido por Kyle Chandler, volta para casa, após prender todos os envolvidos nos atos de extorsão da Stratton, no metrô, despercebido, sem receber glória nenhuma pela justiça que fez, por ter impedido que criminosos continuassem a ferrar financeiramente a vida de muitos cidadãos e empresas desavisadas. E talvez seja por isso que a duração do filme seja tão longa: Scorsese queria passar para seu público a sua ideia de que aqueles tipos de pessoas são péssimas, que sua atitudes são condenáveis e que não merecem absolutamente nada do que possuem, com isso entupindo-nos de cenas onde os protagonistas usam e abusam de drogas, traem suas esposas (principalmente no trabalho deles, para vocês terem uma noção da insanidade da loucura dos mesmos) e ganham dinheiro em cima da população, ainda por cima tirando sarro da mesma - e isso o mestre conseguiu muito bem (e coloque bem nisso).

Mesmo não possuindo toda a inteligência e complexidade e questionamentos filosóficos e análises incrivelmente aprofundadas de personagens como vemos em Ilha do Medo e Taxi Driver, O Lobo de Wall Street possui todo o carisma, agilidade e elementos narrativos de Os Infiltrados e Os Bons Companheiros e mesmo assim ainda consegue se destacar como algo novo. Vale a conferida principalmente por não ser um filme apenas "de história", mas de crítica a determinadas atitudes que podem ser vistas, inclusive, no nosso dia a dia - porém, com outra roupagem, muito mais intimista do que podemos imaginar.

Nota: 10/10

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Crítica: "Cidade Cinza"

Título original: Cidade Cinza
Brasil, 2013, 79 min.
Direção: Guilherme Valiengo e Marcelo Mesquita
Roteiro: Peppe Siffredi, Marcelo Mesquita, Felipe Lacerda
Elenco: Otávio Pandolfo, Gustavo Pandolfo, Nina Pandolfo, Nunca, Ise Vlok, Zefix, Finok





por Gabriel George Martins

Gilberto Kassab assumiu a prefeitura de São Paulo em 31 de março de 2006, após o candidato eleito José Serra abandonar o cargo para concorrer a governador do estado. Quase imediatamente, em 26 de setembro do mesmo ano, Kassab promulgou a Lei Cidade Limpa, que visava à remoção de outdoors e regulamentação dos tamanhos de letreiros e placas em estabelecimentos comerciais — entre outras medidas. A lei entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2007. Não demorou muito a se descobrir quais eram as tais outras medidas.

Contratando equipes de limpeza terceirizadas, cuja função era verificar e remover eventuais irregularidades, o prefeito pretendia, em tese, limpar a cidade de seu excesso de propagandas e imagens desagradáveis. Faria isso caçando agentes de poluição visual, e exterminando-os. Com isso, uma série de pichações e grafites acabou removida de muros por toda a cidade — sobretudo na região central. Há o episódio dos desenhos de mais de cem grafiteiros, apagados após uma manifestação cultural na Avenida 23 de Maio, em 2009. Não chamou tanta atenção. O caso mais notório de uma dessas remoções, todavia, foi bastante controverso, para dizer o mínimo.

Na mesma 23 de Maio, em 2008, parte de um enorme grafite em duas partes foi completamente apagada com tinta cinza. Medindo mais de 700m2, o trabalho fora realizado em 2002 pelos artistas Nunca, Nina, e Os Gêmeos, entre outros. A outra parte do trabalho, no outro lado da via, permaneceu intacta. A prefeitura alegou que tudo não passou de um erro dos terceirizados, e que procuraria resolver a questão. O grafite foi autorizado pela mesma prefeitura ainda em 2002.

Porém, como afirma Nunca a certa altura de Cidade Cinza, "não existe erro de 700m2".

O documentário relata o processo de pintura de um novo mural no mesmo local do anterior, após a pressão pública e midiática. A prefeitura se viu obrigada a permitir a elaboração de um novo grafite na Avenida 23 de Maio. Para a tarefa, foram chamados, além dos Gêmeos — foco da obra —, os artistas Zefix, Finok, e os antigos colaboradores, Nina e Nunca. Em meio a isso, vemos a ação de um dos grupos de limpeza terceirizados, vasculhando a capital em busca de "desenhos irregulares".

Acompanhar essa equipe de limpeza, afinal, parece ser um expurgo de todas as nossas próprias convicções quanto ao que é arte, e o quanto isso se relaciona a questões classistas. Entre os funcionários, há negros, há brancos, há gente humilde. Há inclusive um trabalhador que admite ter pichado muito na adolescência, tendo parado apenas depois de levar inúmeros esporros da polícia. Mas em que a polícia poderia contribuir, distribuindo puxões de orelha (muitas vezes literais), sujando o corpo e a roupa dos pichadores com sua própria tinta de spray? É uma questão mais ou menos pendente, um tanto esquecida na breve narração do funcionário. Só sabemos que ele parou de pichar porque cansou de ser pego pela polícia. Não conhecemos outros detalhes de sua vida, mas o observamos em seu atual emprego: terceirizado, limpador de grafites e pichações.

A maior parte dos funcionários trabalha usando um uniforme azul, à exceção mais clara do motorista e do coordenador do grupo — este sempre vestindo leves camisas sociais. Sujeito de fala mansa, rápida, até amistosa, ele expõe suas opiniões sobre as pinturas de rua, que surgem em número incontável pela cidade. Ele chega a dialogar com a equipe de filmagem diversas vezes, procurando por uma alguma ratificação: "Vocês acham que isso é arte?" E não demora tanto a perceber que os critérios utilizados para apagar os desenhos nos muros partem exclusivamente dele. O coordenador age como um juiz estético, tomando decisões em nome de toda uma população, preservando o "belo" e apagando o "feio". A analogia funciona também se pensarmos no eventual censor abrigado na figura do homem. Como um agente da ditadura, ele tem uma vaticinada autoridade para validar ou não qualquer obra. Ele pode inclusive válidá-las parcialmente, como de fato o faz, ao ordenar o cobrimento de partes de desenhos, deixando outras partes ainda intactas. A intermitência entre o cinza omissor e os grafites legitimados nos muros lembra as enormes lacunas em jornais de grande circulação durante o regime militar (lacunas muitas vezes preenchidas por receitas de bolo).

Daí, o longa se bifurca em duas discussões opostas, mas não díspares. A primeira, e mais evidente, se relaciona ao âmbito artístico/estético das manifestações visuais urbanas. Embora adote o pressuposto de que as pinturas dos grafiteiros devem ser reconhecidas como arte — sendo parte de uma visão particular, e mesmo assim abrangente, sobre a metrópole —, Cidade Cinza é auto-suficiente o bastante para suscitar uma velha discussão: qual é o limite entre arte e vandalismo?

Parece fácil separar uma coisa e outra — geralmente enquadrando o grafite no campo da arte, e a pichação no campo do vandalismo. Mas quando os próprios Gêmeos elevam, de modo não tão claro, mas perceptível, a pichação àquele patamar, nos primeiros relatos do documentário, a questão deixa de ser simples. Afinal, a pichação é, como muitos grafites não reconhecidos pelo governo, pelas elites, uma manifestação marginalizada acerca de algum ponto de vista. Mesmo que esse ponto de vista se mostre tão somente na assinatura estilizada de um jovem em um muro qualquer da periferia. Há uma lógica de demarcação de território, ou de desejo por atenção, reconhecimento, implícita aos rabiscos de spray. Mas, então, nos deparamos com os critérios estéticos: aquilo é bonito? Se é, é para quem? Faz sentido suprimir com cinza (ou branco, azul, vermelho...) as pichações, uma vez que, de acordo com um dos entrevistados — e com o consenso mais geral —, a pichação se renova?

Faltam, porém, depoimentos para o melhor aprofundamento — ou aprofundamento completo — nos argumentos estéticos; sobressai aí a mais sensível falha na direção de Valiengo e Mesquita: a exploração de opiniões envolventes e relevantes, mas todas coincidentes entre si. Não há a procura por pareceres opostos, exceto se eles surgem de forma caricata, como no caso do coordenador da equipe de limpeza. E seria, por exemplo, de extremo valor a opinião de algum membro da prefeitura sobre o assunto, expondo suas convicções quanto aos critérios utilizados para as limpezas. Valiengo e Mesquita preferem suspender a dúvida no ar, concedendo à imaginação dos entrevistados e do público as motivações ocultas. Não obstante, parece válido dizer que elas se apoiam, em fundamentos eufóricos e disfóricos.

Possuímos, muitos de nós, o falso juízo de que as pichações, como representação feia, são amplamente execradas, e os grafites, bonitos, são em geral aceitos. Mas os grafites e grafiteiros não-autorizados sofrem da mesma perseguição impiedosa que os piches e pichadores. E o que se percebe, com o filme, é a admiração dos artistas autorizados pela proibição; em certo momento, vemos Nunca e Os Gêmeos escaparem da produção do novo mural para cobrir o muro de um viaduto com desenhos menos trabalhados, mais vulgares — muito mais próximos de pichações. A atitude conota o respeito pela marginalidade primordial do grafite e da pichação, e pela ilegalidade de suas primeiras criações. Pois, se artistas internacionalmente celebrados como Nunca ainda fazem desenhos irregulares por aí, muitas vezes acabando apagados, que dirá o trabalho de um anônimo?

O desafio à lei se mostra um desafio a todas as leis, um questionamento da justiça por trás de cada uma delas. Justiça para quem? "Até que ponto a arte é uma sujeira para ser combatida com uma Lei Cidade Limpa? Arte suja a cidade?", arguiu Nina, quando do apagamento do mural original. É o rascunho de um comentário social já presente na discussão artística. A Arte pode ser uma representante social, e o combate a ela seria o combate a classes sociais menos favorecidas (porquanto o grafite e a pichação são, a princípio, expressões menos elitistas).

No vocabulário popularesco e enxuto dos grafiteiros percebemos as marcas de uma arte comprometida com uma visão de mundo diversa, por exemplo, daquela de artistas plásticos de renome, oriundos da pintura em tela. (Valiengo e Mesquita tornam a derrapar tentando enfatizar precisamente isso. Muito tempo é perdido com diálogos triviais entre os grafiteiros, conversas que aparecem como mera curiosidade e denotação de uma familiaridade entre as artistas. Não é, contudo, excitante ver e ouvir todas essas falas.)

A arte do grafite (e, possivelmente, da pichação) é algo engajado por natureza, mesmo seus cultores não se dando conta disso. E se se assume como tal, procura fazê-lo disfarçadamente. Quando é perguntado se uma figura específica do mural representa o prefeito, Nunca dissimula, diz que é coincidência.

O engajamento da arte urbana se dá pelo modo como é expressa: na rua. Pois, se desde a década de 90 a cidade vive um processo de desocupação das vias expressas, com a fuga das pessoas para centros ditos mais "seguros" — mais reclusos, com certeza —, o grafite se posiciona em consonância à ocupação da cidade, à exposição de vida em suas ruas. A arte — cinema, literatura, pintura, etc. — migrou da rua para shoppings, livrarias megastore, museus; o grafite se coloca no movimento inverso, e torna inclusivo o exclusivo. O documentário salienta isso com seus depoimentos; mas mais fortes que estes são as imagens, e nos causa algo de irônico presenciar os mesmos grafiteiros autorizados desenhando em muros sem consentimento do governo. Abdicam da exclusividade para adotar a inclusividade, tornando-se ilegais como tantos outros artistas reprimidos.

Outras imagens provocam igual curiosidade. Talvez Valiengo e Mesquita nem se deem conta, mas algumas de suas imagens são evocativas o suficiente para estabelecer profundas discussões. Especialmente sobre essa mesma inclusão: num detalhe, notamos de relance um dos grafiteiros vestindo uma camisa da banda punk NOFX, quando o esteriótipo consagrado desses artistas os pinta como adeptos ímpares da cultura hip hop. Eles o são, não se deve enganar; mas a verdade é que a variedade cultural se mostra neles, tanto quanto se mostra numa população de 10 milhões de habitantes. Essa diversificação chega a extremos em outro instante, quando a câmera passeia brevemente por uma praça, capturando um mendigo e um policial, grupos radicalmente opostos, num mesmo quadro.

Entre esses deslumbrantes acertos, a dupla de diretores erra outra vez ao empregar uma estrutura irregular para o longa. Quebrando-o na metade, eles se aproveitam de um relato simples para puxar uma longuíssima dissecação da carreira d'Os Gêmeos, com menções aos outros grafiteiros. Inserindo irritantes animações que simulam efeitos da pintura em muros, a sequência se estende por tediosos minutos, enquanto temos a sensação de que tudo aquilo poderia ser eventualmente encaixado no decorrer da obra, de forma bem mais fluida. Apenas na volta à repintura do mural, mergulhamos novamente na história, até conferirmos o seu desfecho.

O novo painel da Avenida 23 de Maio foi entregue no dia 21 de dezembro de 2008. O evento contou com a participação dos artistas responsáveis, de jornalistas, o presidente da Associação Comercial de São Paulo — financiadora do trabalho, junto à prefeitura —, do arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Pedro Scherer, e do então prefeito Gilberto Kassab. Dom Odilo ressaltou as qualidades de Kassab, e o bem feito por este à cidade. Quase nos esquecemos de perguntar por que a presença de um membro da Igreja era importante ali, em meio a tantas outras dúvidas: estaria a arte de rua salva a partir dali? A cultura dos muros sujos permaneceria intocada, para a apreciação de cada paulistano? A voz popular ganharia mais força?

Na ocasião, Kassab informou que nenhum grafite voltaria a ser apagado na cidade. A promessa não foi cumprida. A administração de Kassab, inclusive, assumiu posturas cada vez mais higienistas, chegando ao ponto de cogitar proibir a distribuição de sopa a moradores de rua, e expulsar viciados da Cracolândia com forte aparato policial. Modificando alguns aspectos dessa política, a atual administração de Fernando Haddad não mudou tanto isso. Grafites e pichações prosseguem sendo apagados por aí, para o aplauso de umas classes, e desespero de outras. Para a arte, ainda resta a insanável pergunta: qual a beleza disso tudo? E se há, o que ela representa para a metrópole — as metrópoles, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte...?

De certo, só há os desabafos surdos dos excluídos, e as confissões sinceras das vítimas com alguma plateia — como Ise Vlok, afirmando: "A gente é muito pobre de cultura pra apagar a cultura que tem na rua." Algo assim só poderia sair da boca de quem já sofreu com muitos erros de 700m2.

Nota: 8/10

domingo, 19 de janeiro de 2014

Crítica: "Malu de Bicicleta"

Título original: Malu de Bicicleta
Brasil, 2011, 94 min.
Direção: Flávio Ramos Tambellini
Roteiro: Flávio Ramos Tambellini, João Avelino, Bruno Mazzeo (baseado no romance Malu de Bicicleta, de Marcelo Rubens Paiva)
Elenco: Marcelo Serrado, Fernanda de Freitas, Marjorie Estiano, Livia de Bueno, Daniela Galli, Thelmo Fernandes, Fabio Lago, Eriberto Leão, Gianni Albertoni Marcos Cesana


"Quando o inimigo mais perigoso está dentro de si mesmo."


por Leo Bastos

É delicioso quando um filme possibilita uma longa viagem na reflexão. Essa livre adaptação do romance de Marcelo Rubens Paiva (ao qual não li) nos faz questionar dilemas próprios e se aproximar de seus dois personagens principais em um delicado estudo (assim como o ótimo Como Não Perder Essa Mulher) orquestrado com eficiência pelo diretor Flávio Ramos Tambellini, que evidentemente teve suas inspirações no cineasta Woody Allen, com sua instigante narrativa, que apesar de demonstrar simplicidade, é mais complexa do que aparenta ser. Porém o fato mais surpreendente é saber que Bruno Mazzeo (sim, ele mesmo, o péssimo comediante) é colaborador no inteligente roteiro assinalado por Tambellini.

Luiz Mário (Serrado) é um empresário mulherengo, que trabalha com a noite paulistana e coleciona casos amorosos. Apesar disto, não consegue realmente se envolver com nenhuma delas. Para fugir de uma desequilibrada que se envolveu, resolve embarcar para um passeio no Rio de Janeiro, onde é atropelado de bicicleta por Malu (Freitas) na ciclovia do Leblon. Eles logo se envolvem e vivem um romance agradável, que vem a ser abalado pelas dúvidas de Luiz em relação à suposta “não fidelidade” da esposa.

Focando os primeiros minutos da projeção em abordar a agitada vida de Luiz, nos mostrando seu envolvimento com mulheres que geravam seu desinteresse, vendo o sexo como o único privilégio que elas   o ofertavam. Tambellini usa uma montagem frenética e uma leve narração em off - que na verdade serve como uma leitura em voz alta dos pensamentos de Luiz - recurso usado em alguns momentos adiante, auxiliando na narrativa. Com isso o diretor consegue em poucos minutos estampar com clareza o personagem que estamos lidando.

Logo em seguida, no meio de uma fuga de Luiz de uma situação incômoda da sua rotina, Malu surge com uma espécie de “luz no fim do túnel” provocando impacto na vida dele logo na primeira aparição, ao atropela-lo acidentalmente de bicicleta – metáfora muito bem empregada que não só faz jus ao seu título, como também a toda narrativa – levando em seguida à imagem de relacionamento perfeito, que é desfeita aos poucos.

Ao contrário de render ao machismo típico de focar em um julgamento da mulher pelos seus desejos, Tambellini propõe uma análise das próprias inseguranças e egoísmos do parceiro. Conduzindo a trama a partir do ponto de vista de seu protagonista. Ao começar ficar obcecado pela ideia de “traição” da mulher, Luiz passa a ver nela sua própria imagem, sem perceber que na verdade está se auto-julgando, e não admite pra si que esse incômodo parte por está habituado a tratar suas parceiras como objeto. Além de uma espécie de culpa por ter descartado tantas mulheres tão facilmente, tendo medo de ser descartado da mesma maneira por aquela que finalmente lê despertou um sentimento maior. Que se transforma em posse. Insegurança essa que é demonstrada desde antes de conhecer Malu, onde sentia medo simplesmente de correr o risco de embarca em algo mais extenso com qualquer mulher. Em um dos atos mais desprezíveis do personagem, Luiz tentar transar com outras por vingança à Malu. Colocando o sexo como uma obrigação a lê servir, não por desejo e prazer. Tratando mais uma vez as parceiras como meros objetos ao seu dispor. Assim, sem perceber que essas fraquezas são as verdadeiras vilãs da história, o afastando de Malu. Mérito também de Marcelo Serrado, já que o ator tem uma ótima postura em cena, diferenciando nas expressões do personagem suas duas personalidades, que usa um tom carismático e sedutor quando está em busca de suas vontades e outro desesperado e perdido quando as coisas não saem do jeito que planeja.

Malu é uma personagem encantadora e admirável, que ver a felicidade nas coisas mais simples, como andar de bicicleta. Tendo várias amizades (também não é pra menos se tratando dessa beleza de pessoa que é nos apresentado) e grande parte homens, o que gera os ciúmes de Luiz. Fernanda de Freitas constrói sua personagem de forma espontânea, fala animada e quase sempre sorridente, o que contribuem ainda mais para a nossa identificação.

O elenco ainda conta com alguns personagens coadjuvantes, que na sua maioria se tornam desnecessários para o filme. Como as pessoas que trabalham com Luiz na casa noturna que mantém. Marjorie Estiano surge em uma participação tímida na maioria das suas cenas, que só vem ter importância no desfecho.

Sem dúvida uma das cenas mais interessantes é uma conversa de Luiz com um amigo, onde ele desabafa sobre os tormentos de suas dúvidas sobre Malu, questionando a natureza da “traição”. Em seguida o amigo pergunta se ele gostou de prato que está degustando, ele responde que sim. Logo depois ele pergunta: “você gostaria de comer esse mesmo prato todos os dias?”. Uma metáfora simples, mas que nos leva a pensar de modo geral sobre o julgamento babaca e típico que a fuga da prisão monogâmica pode causar.

Buscando ainda inspiração na obra de Machado de Assis (Capitu), visível desde a escolha de contar a história sob o ângulo de Luiz, até o fato de não se preocupar em revelar se Malu matinha outros relacionamentos (além de caminhos trilhados pelo roteiro que perceberam ao longo da projeção), sendo grandes acertos que só ajudam a enriquecer a verdadeira importância da obra. E ainda alterando em alguns momentos sua carga dramática e tensa em momentos cômicos sutis.

Em sua direção, Tambellini não dispõe de ambições em relação a enquadramentos e movimentos de câmeras. O que pode ser interpretado com certa preguiça ou falta de experiência (apesar de estar em seu terceiro longa-metragem), mas também por ter uma grande confiança de que seus personagens por si só seguram o filme (será?). Mas um pouco de ousadia não faria de nenhum mal.

Malu de Bicicleta é mais uma prova das maravilhas de diversidades narrativas que o cinema nacional dispõe. Um trabalho desafiador, que não se preocupa em ser um romance, mas o relato de um sujeito (imbecil?!) tão preso em seus conflitos internos que não se dá conta da grande chance de ser feliz que está tendo ao lado dessa mulher apaixonante.


Nota: 8/10

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Crítica: "Copacabana Mon Amour"

Título original: Copacabana Mon Amour
Brasil, 1970, 85 min.
Direção: Rogério Sganzerla
Roteiro: Rogério Sganzerla
Elenco: Helena Ignez, Otoniel Serra, Paulo Villaça, Guará Rodrigues, Lilian Lemmertz






por Gabriel George Martins

Quantas putas batem ponto todos os dias — e noites — na orla de Copacabana? Quantos moleques de menor descem do morro para assaltar turistas e fazer arrastões nas tardes fervilhosas do Rio? Quantos malandros se metem nos bares do samba, do pagode, de outros desses ritmos, e saem de lá bêbados, a cair, maltratados pelo calor? Quantos pais de santo improvisam terreiros nas favelas, trazendo seu quinhão de cultura renegada para uma periferia esquecida? Quantos usuários de drogas caçam algum local esquecido na metrópole, querendo apenas fumar seu cachimbo de crack ou injetar sua heroína? Quantos gays buscam o amor no Carnaval, enquanto, em todas as outras épocas do ano, são duramente reprimidos, na voz do machismo a gritar: "bicha! boiola! viado!"? Quantos loucos há, largados nas ruas, nos becos, na entrada da comunidade, na sarjeta enfim, imprecando contra qualquer fantasma invisível ao são — sem se dar conta de que, afinal, esse é o fantasma da pobreza, da miséria, da desgraça humana?

Prostitutas, trombadinhas, vadios, macumbeiros, viciados, homossexuais, malucos. Também os traficantes, pichadores, bóias-frias, empregadas, cafetões, autônomos. Todos diferentes, com suas peculiaridades, e todos historicamente jogados no mesmo antro — socialmente, espacialmente. Socialmente, porque relegados ao status de "escória", de gente baixa, de baixa cultura, ou de cultura alguma; tudo aos olhos dos figurões do progresso, do desenvolvimento, a gente fina da cultura alta. Espacialmente, porque atirados para os cantos da cidade, proibidos de ficar no centro, de ocupar o centro, de fazer parte do tal desenvolvimento. Proibidos com política, com polícia, com patrões e impropérios, que os fazem subir aquele monte — e aquele outro — e mais aquele — e depois todos os outros, construindo casinhas frágeis, humildes, ameaçadas. Seja pela chuva, pelo crime organizado, pelo crime desorganizado praticado pelas autoridades. Todos vulneráveis.

Esses cidadãos marginais, legatários da escravidão, do êxodo rural decorrente da expansão industrial, da ditadura militar — cujo retorno alguns setores abobados da classe média defendem com incrível veemência —, são todos pobres em posses. Pobres, mas ricos em narrativas, em música, literatura; folclore. Cultura. Serviram de base para estudos sociológicos, canções de MPB, e para o que ficou conhecido como "cinema marginal brasileiro". Tão marginal quanto seus excluídos, em estética, em reconhecimento imediato...

Copacabana Mon Amour, quarto longa de ficção de Rogério Sganzerla (O Bandido da Luz Vermelha), é um pulsante expoente do movimento. Um filme que cheira a cachaça e tem gosto de areia. Vidimar (Serra) inclusive sente esse gosto — bem como se deleita com sabor do fogo das velas que apaga em sua boca, em diversos momentos. Ele e sua irmã, a prostituta Sônia Silk (Ignez), moradores de uma favela, vagam por Copacabana compartilhando suas inspirações e desilusões com os cariocas, os gringos, e mesmo com o próprio ambiente. Vidimar é apaixonado pelo dr. Grilo (Villaça), seu autoritário e abusivo patrão, que, por sua vez, se aproveita desse sentimento numa relação tênue, dividida entre a adoração verdadeira e a mera exploração.

Dr. Grilo, em específico, surge como representação contraditória da figura do opressor. Enquanto patrão, não hesita em reduzir seus empregados a uma condição moral menos que humana, tratando-os como escravos de sua posse, consoante à sua gritaria: "Sou eu que mando aqui! Sou eu! Sou eu!" Curiosamente, Grilo também se rende, vez ou outra, aos encantos de Vidimar, beijando-o com fogo e o apalpando; não obstante, ele não abdica de sua autoridade, e demonstra-a numa conduta violenta para com o empregado. Grilo é um tipo machista, que, no entanto, se entrega aos prazeres do amor homossexual; e, utilizando o afeto de Vidimar, ele prossegue oprimindo, agredindo, brincando com o carinho deste. Vidimar, contudo, é a antítese disso, o explorado que se afeiçoa ao explorador, mesmo continuando a ser explorado.

Algo disso é de igual modo visto em Sônia Silk. Perseguida constantemente por um fantasma incompreensível — girando, frenético, assemelhando-se à dança de algum ritual afro-brasileiro —, ela também se mantém alienada quanto às forças coercitivas que a cercam. Silk é enganada até por sua amiga prostituta (Lemmetz), uma igual, após esta não lhe pagar algo que devia. Mas a opressão ainda se manifesta de maneira menos evidente, com a visão irônica de uma cidade "em progresso" de cima do morro, dos barracos da comunidade, numa distinção clara entre dois mundos num mesmo lugar. O carro de polícia no qual Silk se recosta, sorrindo para os passantes, oferece ainda outra ameaça inevitável (tanto à prostituta quanto à atriz que a interpretou e a equipe de filmagem, pois os policiais condutores do veículo se encontravam num bar enquanto a cena era rodada). Quanto a todo esse sufocamento classista, Sônia Silk só consegue se indignar e reclamar ("Eu tenho nojo de pobre!", "Não aguento mais essa miséria"), sem, com efeito, fazer algo para reverter sua situação. A "Fera Oxigenada" ainda não se mostra por completo. E o fantasma perseguidor, afinal, é o fantasma da pobreza, da indigência, da loucura.

O roteiro de Sganzerla parece abraçar essa loucura. O texto — cujo teor subversivo faz pensar na recepção militar e até mesmo pública do filme no período da ditadura — não se contenta em seguir um padrão linear. O enredo de Sganzerla não se engendra no desenvolvimento de uma história, e distribui o foco das ações para cada personagem de forma anárquica. Isso não significa a exposição de historietas individuais, tampouco. A obra enfatiza algo além dos diálogos e narrações em off, embora soe tolo e quiçá errôneo afirmar que Sganzerla dá voz às reflexões de seus caracteres. É muito mais. É a concessão verbal aos pensamentos do próprio autor. Mais: do próprio povo.

Sganzerla, porém, faz isso ao seu modo amalucado, e intercala esses insights às falas das personagens, iniciativa de causar estranheza a qualquer espectador. Assim, e embora pareça, não é gratuito o pedido que o vagabundo interpretado por Guará Rodrigues faz a marinheiros estadunidenses: "Money. Money. American friend, money", diz ele, em tom mais afirmativo que inquisitivo. Logo em seguida, após não obter qualquer atenção dos marinheiros, ele levanta os braços e, andando em direção à câmera, dispara: "Qual é o destino do homem na Terra?" Apenas para voltar a repetir: "Money. Money", deixando ao público a decisão de creditar essas novas repetições como uma resposta à pergunta ou somente novos pedidos.

As repetições, de mais a mais, têm grande responsabilidade na construção cômica do roteiro. Sônia Silk, em diversas ocasiões, repete como uma louca frases carregadíssimas de valor social ("Eu tenho pavor da velhice!"), que terminam por se humorizar com o atraente e acentuado sotaque de Ignez. Em uma sequência, Sônia, depois de sofrer uma tentativa de abuso de um homem, sai pela rua gritando: "Eu não sou uma tarada!", numa linha que acaba por ser bem engraçada, e triste, ao mesmo tempo; Sônia grita para provar ao mundo que ela não foi a responsável por aquilo — termina por ser um grito coletivo, de todas as mulheres.

Mas a repetição verbal não é a única matriz de graça — e insanidade —, uma vez que cenas inteiras independentes entre si acabam bastante aproximadas pela ação das personagens. Não para mais, isso se reflete na trilha sonora de Gilberto Gil, cujas músicas são ouvidas durante a projeção como uma playlist indo e vindo, em eterna reprise (e no modo shuffle). As próprias execuções musicais repetem muito os ritmos e o canto das letras, como neste refrão, que ainda reune as cores tupiniquins ao palavreado inglês: "Yellow green, green yellow, mr. Sganzerla."

A junção de elementos diferentes também se dá no modo como a película foi filmada. A locação da Avenida Prado Junior, tradicional ponto de choque entre "tribos" diversas, foi muito utilizada durante as filmagens, e sua essência universal passou para o longa, que retrata prostitutas, domésticos, malandros e malucos convivendo numa mesma área. Consagra-se uma espécie de tópica da "rua que a tudo congrega", e — como me lembrou um amigo após a sessão do filme — isso lembra a proposta parecida da comédia Irma La Douce, de Billy Wilder — na qual prostitutas, feirantes, cafetões e policiais se contrapõem mutuamente numa mesma rua.

Vale ressaltar que Copacabana Mon Amour também é uma comédia, e seu riso deriva não só das já citadas repetições, mas também da irreverência das situações, mesmo as mais baixas, pesadas ou sérias — passando pelas leves e descontraídas. Assim, é realmente belo como Sganzerla pode extrair sorrisos dos espectadores com uma simples sequência de gracejos lésbicos num quarto. Muito disso depende do carisma das atrizes envolvidas, e outro tanto da construção envolvente de suas respectivas personagens.

Essa comicidade torta é o registro do antifilme de Sganzerla. Afinal, o caos fílmico se instaura em muitas instâncias, e a obra se mostra subversiva até em aspectos técnicos. Para filmar Otoniel Serra correndo pelo calçadão, por exemplo, Sganzerla e o diretor de fotografia Renato Laclete acoplaram a câmera em um capô de Fusca, em detrimento de um convencional travelling. Em contrapartida, no âmbito sonoro, o cineasta preferiu não usar som direto, e optou por dublar as personagens com seus respectivos intérpretes. O resultado (total estranheza) se assemelha ao obtido por Fellini em Satyricon.

Concorre para o esplendor cinematográfico de Copacabana Mon Amour muitos outros fatores; alguns próprios do longa, outros extra-filme. Mas o que requer mais de nossa visão não é encontrado nem na ficção, nem na realidade. Dentro de nós mesmos, há que se olhar para o modo como enxergamos o mundo que nos é apresentado. E o mundo, tanto na obra tresloucada de Sganzerla quanto fora dela, se apresenta como cruel para os párias, os renegados — mas também, ora vejam só, para os aceitos, os incluídos. Isso porque o mundo é de fato extravagante, e todos colaboram para fazê-lo assim.

Em verdade, Sganzerla foi bem realista em sua desordem brasileira. Só se espera que o Brasil não alcance o regresso.

Nota: 10/10

Crítica: "Ninfomaníaca: Vol. 1"

Título original: Nymphomaniac: Vol. 1
Dinamarca/Alemanha/França/Bélgica/Reino Unido, 2013, 120 min.
Direção: Lars von Trier
Roteiro: Lars von Trier
Elenco: Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgård, Stacy Martin, Shia LaBeauf, Uma Thurman, Christian Slater





"Um estudo de personagem guiado por filosofias humanas, tudo usando o sexo como principal guia - porém não livre de problemas."


por Bruno Albuquerque

Em seus cartazes de divulgação, vemos a frase "Forget about love" (algo como "Esqueça o amor") acima de fotos dos personagens aparentemente tendo orgasmos. Em seu trailer, imagens de vulvas, sexo violento e nudez ao som de um rock pesadíssimo.

No filme em si, um estudo de personagem, gerador de filosofias a partir do uso de metáforas e, em alguns momentos, comédia. Tudo usando, obviamente, o sexo como principal guia.

Lars Von Trier é um cara interessante. Sempre escolhendo temas riquíssimos para abordar (Dogville com suas máscaras sociais e Melancolia sobre relações familiares e depressão), o diretor sempre soube abordá-los de maneira original e golpeando o espectador com a mensagem que escolhera para passar. Agora, em Ninfomaníaca: Vol. 1 ele mais uma vez repete a dose - porém, sem o mesmo efeito dos filmes citados anteriormente (o que não o diminui em nada, inclusive).

A grande surpresa - e agradabilíssima, diga-se de passagem - foi sua escolha em abordar temas extremamente filosóficos e, ainda por cima, utilizando-se de diversas metáforas (utilização que, particularmente, adoro). A mais recorrente é sobre a pesca - e talvez a mais correta de todas: o que Joe faz realmente é uma pesca. Assim como um pescador, ela vai até a fonte do que quer. Assim como um pescador, ela lança suas iscas (as roupas, as expressões, as falas) e assim como um pescador dedicado e competente... acaba conseguindo além do necessário.

Como eu já havia dito, o filme é um enorme estudo de personagem. Então, o foco da narrativa ser único e exclusivo para a vida de Joe é mais do que aceitável. Logo no início, Joe deixa bem claro o que é. "Sou um ser humano mau", admite na sua primeira conversa com Seligman. A partir daí, o filme se presta a explicar o porque de sua fala. E atinge isso muito bem: a mostra mentindo para seus parceiros, acabando com suas amizades, perdendo entes queridos e fracassando em sua tentativa de amar, assim como acabando com a família de um homem casado, tudo por motivos que ela própria causou. Tudo, é claro, tendo um paralelo traçado por meio de metáforas, expostas em diálogos riquíssimos, geralmente falados por Skarsgård. Resumindo: o roteiro, de forma geral, é ótimo.

As atuações são outro ponto a se destacar. A Joe mais jovem é extremamente inexpressiva quando necessário, porém há uma cena de sofrimento em que ela se destaca. Charlotte Gainsbourg interpreta uma Joe corretíssima, com uma expressão assustada embora ameaçadora, mantendo sempre a mandíbula levemente esticada para a frente e os olhos quase arregalados por quase todo o tempo. A fotografia é interessante por guiar a nossa atenção: note como, sempre que Joe, na casa de Seligman, está falando algo importante ela está logo abaixo de uma luminária, que expele uma luz de coloração branca (em meio a um quarto aonde a cor amarela é a luminosamente predominante) e no capítulo sem cores, quando uma enfermeira passa por Joe e seu chapéu é o único item na cena inteiramente branco, deixando claro que ali era um hospital. Também é bacana notar os gráficos que surgem em cena, as vezes para gerar humor, as vezes para aumentar a informação do espectador sobre a cena (como as explicações sobre os números de Fibonacci ou a composição de uma sinfonia no final do longa).

Mas como dito na citação desse texto, Ninfomaníaca: Vol. 1 tem seus problemas. Não só é expositivo em explicar a grande maioria de suas ótimas metáforas, mas é óbvio em algumas de suas inserções não-diegéticas e possui cenas desnecessárias. Várias, aliás: os slides que mostram diversos pênis em tela em nada acrescentam à personalidade de Joe, que, em uma breve frase, já nos convenceria de que ela, de fato, conhece todos os tipos de pênis das regiões ao seu redor. A imaginação de Seligman, com Joe fantasiada de professora, é outro exemplo também, assim como o pai dela, que após se passarem anos no enredo retratado, permanece com a mesma jovem expressão. Também as coincidências do roteiro, que se tornam mais superficiais ainda quando tenta parecer original ao comentar a si mesmo, usando os diálogos dos personagens.

A polêmica acerca do filme não tem fundamento - aliás, até tem: sua campanha publicitária. Com um símbolo que lembra os contornos de uma vagina, os personagens expressando prazer sexual e frases como "esqueça o amor", era óbvio que o rebuliço iria surgir. Mas ao conferir o filme, notamos que isso não passou de uma jogada de marketing. De fato, há bastante sexo (vemos a genitália dos personagens vez ou outra), porém ele não é constante. A preocupação maior do filme é contar sua história, e isso fica claro demais.

Com imagens do próximo filme surgindo durante os créditos finais, Ninfomaníaca: Vol. 1 é interessante na maneira com a qual trabalha sua proposta, mas que parece ter guardado toda a selvageria que prometia para o final - que será, em seu marcado para ser lançado em março, "Vol. 2".

Nota: 7/10

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Crítica: "Frozen — Uma Aventura Congelante"

Título original: Frozen
EUA, 2013, 108 min.
Direção: Chris Buck e Jennifer Lee
Roteiro: Jennifer Lee, Chris Buck, Shane Morris (baseado no conto de fadas A Rainha da Neve, de Hans Christian Andersen)
Elenco: Kristen Bell, Idina Menzel, Jonathan Groff, Josh Gad, Santino Fontana, Alan Tudyk, Ciarán Hinds


"Disney quebrando suas próprias barreiras."

por Leo Bastos

Houve um tempo em que minha fé nos estúdios Walt Disney estava muito abalada. Era muito difícil suportar a decepção de ver o grande responsável por minha grande paixão ao cinema, se tornar apenas mais uma fábrica de produtos artificiais e puramente comerciais. Fato que era de praxe durante a década de 2000. Exceto quando se tratava da Pixar. Mas de uns tempos pra cá ela está fazendo de tudo para recuperar o prestígio. Apesar de não morrer de amores por Enrolados, é uma animação bem melhor que os lançamentos anteriores. Detona Ralph é fantástica. Muito bem produzida. E agora temos o fabuloso Frozen — Uma Aventura Congelante, que volta a investir na velha fórmula das princesas, dessa vez trazendo duas personagens de personalidades fortes, as quais talvez sejam as melhores protagonistas do estúdio.

Com uma história que conta com velhos elementos do gênero – magia, príncipes, criaturas estranhas, etc – Frozen coloca na tela os conflitos das irmãs Anna e Elsa (dubladas na versão original respectivamente por Kristen Bell e Idina Menzel), duas princesas. Elsa tem o poder (ou maldição) de criar gelo e neve. Em um acidente, acaba ferindo a irmã. Para proteger ambas, o rei e a rainha autorizam trolls que moram na floresta a apagar as memórias de Anna. Com isso resolvem isolar Elsa do mundo e da irmã para protegê-los da exposição aos seus poderes, causando o sofrimento de ambas por se afastarem. Tempos depois o rei e rainha morrem em um naufrágio e Elsa acaba tendo que assumir o trono. Durante a cerimônia de coração, outro incidente ocorre: Elsa termina demonstrando seus poderes publicamente. Assustada, ela resolve fugir para uma isolada montanha, provocando um grande inverno no reino. A partir daí, Anna parte em uma perigosa jornada em busca da volta de Elsa.

O que mais chama atenção é a construção das duas protagonistas – não foi à toa o que citei no final do primeiro parágrafo. O privilegiado roteiro é de grande delicadeza ao focar nas características e na relação das personagens, que resulta no público uma grande afeição por ambas, e fácil identificação com a preocupação de Elsa em zelar a irmã. O mesmo para a determinação de Anna em encontrá-la depois de seu desaparecimento. Essa última tem falas e movimentos mais acelerados, o que demonstra sua personalidade mais alegre e impulsiva. Enquanto Elsa tem justamente o contrário, expressões mais leves e a voz mais calma, abordando sua frieza e tristeza com a vida. O que se modifica na bela sequência musical Let It Go, onde Elsa está tendo pela primeira vez liberdade com seus poderes, e aos poucos vai se livrando do vestido verde e da capa roxa que simbolizam sua depressão, e adotando um vestido azul cheio de caldas agitadas pelo vento, mais uma vez em harmonia com o visual da animação. É também visível durante esse musical, como Elza vai se soltando e sua expressão tímida é abandonada por animados movimentos corporais, acompanhada por um lindo nascer do Sol, onde vemos toda liberdade e leveza na alma daquela jovem que finalmente tem paz para ser ela mesma.

Os antagonistas são muito bem estabelecidos também. O jovem solitário Kristoff é carismático e protagoniza situações divertidas ao lado de Anna. Assim como o boneco de neve Olaf – cumprindo a tradição de sempre ter uma criatura engraçada que faz piadinhas toda hora, em uma animação – mas não precisa sair do contexto principal da história para fazer a plateia rir, como acontece com muitas. Sempre é prazeroso seus momentos em cena. O príncipe Hans tem um papel muito importante na história – claro que não posso revelar tudo porque seria spoiler – mas começando por quebrar o antigo clichê de trabalhos do tipo, do tal “amor à primeira vista”, por exemplo, servindo até como paródia dentro da própria animação. Só isso que posso adiantar.

Voltando adotar a fórmula dos musicais, que são de grande de acerto, com canções muito bem escritas, com ótimas coreografias e gostosas de acompanhar. Cada uma combinando com tom de cada situação. Algumas como a já citada Let It Go devem se tornar memoráveis como aconteceu com os grandes clássicos do estúdio. (Como ainda não vi na dublagem original, infelizmente, não posso comentar sobre o desempenho musical de cada um.)

Privilegiado com um belíssimo design de produção, que explora ao máximo o tema principal do filme, o inverno, usando as cores branca e azul para criar diversas paisagens interessantes, como o castelo de neve criado por Elsa. Aliás, é muito legal acompanhar a sutil transição para esses ambientes que vão surgindo depois da fuga dela. O talento da equipe pode ser demonstrado desde a criação de pequenos flocos de neves que dão um lindo visual ao 3D, até a construção da escadaria do castelo citado, servindo também como importante instrumento para narrativa, simbolizado a evolução dos domínios que Elsa mantém sobre o poder. Criando também um visual bem original para os trolls, que surgem como seres pequenos e em forma de pedra. Ajudando na fácil identificação para o público infantil, que os tornam adoráveis. Assim como os personagens humanos, que moldados com expressões faciais delicadas e olhos grandes, que também contribuem para o carisma.

Além de todas as qualidades já citadas acima, Frozen ainda consegue a proeza de quebrar todas as barreiras do machismo típico de animações de gênero– novamente voltando para minha colocação no fim do primeiro parágrafo – tendo suas protagonistas com atitudes fortes o suficiente para se protegerem e resolverem seus dilemas. Em uma das cenas finais, através de um simples ato - determinante para o desfecho - é mais que visível à quebra dessa barreira. Claro os outros personagens tem seu papel no desenvolver, mas são meros coadjuvantes nesse mundo dominado por essas duas mulheres poderosas e que espero que sirvam como referências para a criação de muitas personagens que estão por vim. Ou melhor, que a animação em si seja fonte de exemplo. E continue assim dona Disney.

OBSERVAÇÃO 1: Como já havia dito, não tive o privilégio de conferir a dublagem original, devido a falta de sessões legendadas aqui em Maceió – AL. O que é lamentável, porque mais uma vez temos a presença de famosos no projeto. O que venero, e muito. Fábio Porchat até faz um trabalho menos desastroso que Luciano Huck em Enrolados. Mas continuo preferindo ele como humorista. 

OBSERVAÇÃO 2: Há uma pequena cena pós-créditos.

Nota: 10/10

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Crítica: "Como Não Perder Essa Mulher"

Título original: Don Jon
EUA, 2013, 90 min.
Direção: Joseph Gordon-Levitt
Roteiro: Joseph Gordon-Levitt
Elenco: Joseph Gordon-Levitt, Scarlett Johansson, Julianne Moore, Tony Danza, Brie Larson, Rob Brown, Italia Ricci, Lindsey Broad





" O interessante estudo sobre a esfera dos relacionamentos que marca a estreia de Gordon-Levitt como diretor "

por Leo Bastos

Don Jon (mais uma vítima das traduções toscas do Brasil, nomeado Como Não Perder Essa Mulher) não é bem uma comédia romântica que agradará com facilidade o público em geral. Creio que muitos iram rotular o filme de “machista”. Isso se deve pela iniciativa ousada do diretor e roteirista estreante Joseph Gordon-Levitt, que leva para as telas uma história focada nos conflitos sentimentais de um protagonista, que vivido pelo próprio, tem características aparentemente vistas como “problemas” pelo senso comum. Entre elas destacam-se o grande número de mulheres que se relaciona sexualmente e sua fixação por conteúdos eróticos.

Em meio à sua rotina agitada, Jon Martello ainda dedica-se a prática de atividades de musculação, sua família, e a igreja, onde faz visitas frequentes com fins de relatar ao padre seus últimos atos, aos quais considera “pecado”. Casualmente em uma das suas noitadas de diversão acaba tendo uma forte atração pela bela (Suspiros…) Barbara Surgaman (Scarlett Johansson) e eventualmente iniciando um relacionamento que levará Jon a questionar os dilemas da sua rotina.

Bem, como eu havia mencionado, pode ser visto como machismo os rumos que o filme busca explorar. Mas essa é uma visão totalmente equivocada. O roteiro de Levitt na verdade é muito inteligente, diga-se de passagem. Ao invés de se acomodar em situações de vergonha alheia, ou se render aos clichês do gênero, constrói uma grande reflexão sobre a esfera central dos relacionamentos, que acaba se tornando em certos casos uma espécie de “prisão psicológica” devido ao egoísmo do parceiro (a). Além da coragem em abordar de forma segura e sem tabus o uso feito pelos admiradores do mercado erótico. Tudo isso com base no sútil e divertido estudo do personagem principal.

Aliás, Jon se mostra cada vez mais interessante à medida que o conhecemos. Levitt não se preocupa em expor uma figura moldada pelos estereótipo do politicamente correto, mas sim um ser humano com tantos defeitos quanto qualquer um. Isso pode ser visto por sentimento de possessão e egoísmo que Jon exibe em alguns momentos, ao citar em sua narração em off ” minha família, meus amigos, meus pornôs” ou até em cena que se recusa a ter uma faxineira limpando sua casa por não gostar de estranhos lidando com o que é seu. Essa questão de espaço defendido pelo personagem é jogada de algumas formas. Levitt deixa mais claro em duas sequências que exibem as primeiras amostras de seu talento como diretor: a primeira mostrando a facilidade que Jon tem ao fazer sua musculação, mas o mostrando sozinho no plano, e em outra mais adiante, ele se sente incomodado com a presença de Barbara durante o mesmo evento. Uma espécie de hábitos que vivem em mundo fechado exclusivamente ao seu alcance.

Além disso, Jon ainda tem problemas de insegurança, vendo com preconceito seus próprios gostos. Demonstrando isso com suas visitas de praxe a igreja, vendo a confissão como uma espécie de terapia para os atos que ele mesmo os considera “imoral”. Segundo a própria visão que o personagem expõe, ele se realiza mais na masturbação do que no sexo real. Vendo o conteúdo erótico como arte. Ao ter essas predileções julgadas por Barbara, Jon encontra além do dilema de aceitar ou não a crítica dela, sua autocrítica.

Levitt encara sobrecarregar suas funções com o posto de protagonista, criando em Jon um sujeito com postura carismática que levará com mais facilidade ao telespectador a tentar compreender seus conflitos e para julgá-lo com base em argumentos claros e justos. A sempre ótima Scarlett Johansson (Suspiros…) faz uma construção bastante eficiente da sua personagem que leva a Barbara um tom sútil de garota segura que aos poucos vai revelando sua verdadeira personalidade de modo coeso e sem soar artificial. E ainda temos a excelente participação de Julianne Moore no papel de uma mulher experiente que surge delicadamente na vida Jon, revelando-se aos poucos uma personagem decisiva ao desenvolvimento do enredo.

Mas apesar de demonstrar bastante eficiência em sua estreia atrás das câmeras, Levitt escorrega às vezes pelo exagero em algumas situações que usa bem até certo ponto. Como a narração em off, essencial em diversos momentos, e em outros acaba soando desnecessária, servindo apenas para narrar o que já estamos vendo, problema normal em tantos filmes que usam o recurso. Além de algumas extravagâncias no uso da câmera. Mas nada demais que comprometa o resultado final.

Ousado e inteligente – a primeira característica citada obviamente não funcionaria nunca sem a segunda, o primeiro longa-metragem de Levitt é bem mais profundo que um simples trabalho do gênero. Apesar do risco de algumas pessoas não se identificarem ou gerar um certo incômodo por focar na realidade crua do mundo em que habitam esses personagens, só o fato de proporcionar a reflexão já é um prato cheio para minha recomendação. E que venham mais trabalhos desse jovem e promissor diretor iniciante.

Nota: 8/10

domingo, 12 de janeiro de 2014

Crítica: "Jogos Vorazes: Em Chamas"

Título original: The Hunger Games: Catching Fire
EUA, 2013, 120 min.
Direção: Francis Lawrence
Roteiro: Simon Beaufoy, Michael Arndt (baseado no romance Em Chamas, de Suzanne Collins)
Elenco: Jennifer Lawrence, Liam Hemsworth, Jack Quaid, Josh Hutcherson, Woody Harrelson, Elizabeth Banks, Lenny Kravitz, Philip Seymour Hoffman, Amanda Plummer


"A segunda parte da saga Jogos Vorazes só nos faz ter mais certeza ainda de que é a série infanto-juvenil cinematográfica mais original e bem trabalhada dos últimos tempos."


por Bruno Albuquerque

Há tempos, diversos amigos meus - e até minha namorada, principalmente ela - me cobravam: "Já viu Jogos Vorazes? Não?! Vá ver agora!". Sempre adiei por acreditar que fosse só mais uma dessas séries infanto-juvenis, e provavelmente ser mais um caça-níquel que se aproveita da paixão insana de fãs adolescentes. Porém, após conferir o primeiro filme, de 2012, me surpreendi: original e com uma mensagem maravilhosa, Jogos Vorazes me chamou muito a atenção. Porém, não aguardei ansiosamente o segundo. Quem diria que mais uma vez me surpreenderia: sendo tão bom quanto o primeiro, Em Chamas se destaca ao firmar ainda mais a ideia de que todo tipo de governo manipulador e opressor deve ser destronado. E pelas mãos do povo.

Mas não por isso o longa se esquece de seus personagens e de construir uma narrativa interessante: de cara, já vemos uma Katniss atordoada pelo trauma de ter participado - e ganhado, vendo quase todos ao seu redor sendo mortos (e tendo que matar alguns) - da última edição dos Jogos Vorazes. Fora isso, ainda há espaço no filme para desenvolver a vida de Katniss após o evento, tanto em casa, com sua mãe e irmã, quanto fora dela, com seu namorado - e suas intrigas, já que ela deve forjar um relacionamento com Peeta, para manter a imagem gerada para a população no longa anterior. É interessante ver como isso é um reflexo da manipulação opressora do próprio governo que comanda os Distritos, que, assim como todo governo totalitarista, acaba por influenciar pessoalmente as pessoas que dele dependem. E isso, para o filme, é engrandecedor, já que ele utiliza seus personagens e situações para alicerçar as ideias que quer transmitir.

Tecnicamente, o filme não deixa a desejar: com figurinos que remetem ao filme anterior mas que trazem alguns detalhes novos (perceba como as armaduras do exército do governo são diferentes e como Katniss agora veste um cachecol), para firmar a noção de que os tempos estão mudando. A fotografia é certeira ao nos introduzir à época fria retratada no longa com uma paleta de cores esbranquiçadas e, no final do filme, em um momento de alegria (sem spoilers, relaxem!), a tela é tomada por uma iluminação amarelada, quente, nos remetendo a própria alegria retratada em cena. As atuações são sensacionais - e, claro, o destaque é dela: Jennifer Lawrence é encantadoramente talentosa. Na cena do elevador, aonde uma das outras competidoras fica nua na sua frente, a expressão de Lawrence é sensacional. Josh Hutcherson é correto, como sempre, e Woody Harrelson nos relembra sua capacidade "camaleonica" de desaparecer atrás de seus personagens. Philip Seymour Hoffman, um de meus atores favoritos atualmente, surge misterioso, e quando nos é revelado seu segredo toda a sua interpretação fria e egoísta, chegando a ser repugnante, é justificada. E, para terminar, não podemos esquecer Amanda Plummer, consagrada por Pulp Fiction, sendo sensacional em seu papel.

Acredito que o único defeito de Em Chamas é se segurar muito em Jogos Vorazes. A estrutura do filme é IDÊNTICA ao anterior, o que nos revela um certo medo em arriscar algo novo. Em diversos momentos, me senti assistindo ao mesmo filme de 2012. Também é importante lembrarmos que sua duração se estende desnecessariamente - diversas cenas e sub-enredos são descartáveis (como a da senhora idosa que se sacrifica no meio de uma névoa assassina). Entretanto, por mais que esses sejam erros pesados, Em Chamas é repleto de qualidades que podem compensá-los: o final, surpreendente é um deles (e me limito a isso para guardar as surpresas).

Também é importante ressaltar como o cenário do filme reflete ao que está acontecendo no nosso país (e em outras partes do mundo também): uma mídia e um governo tão corruptos e saturados que não conseguem controlar totalmente seu povo, fazendo-o se rebelar mesmo sabendo que muito longe não conseguirão ir. É sensacional ver ativistas na tela, portando bandeiras com o símbolo do tordo de Katniss, e lutando pelos seus direitos mesmo sabendo que o violento e tirano governo irá oprimi-los. E é importante ressaltar como o filme retrata o governo como antiquado: a cena em que o namorado de Katniss é torturado acontece com ele amarrado e levando chicotadas, remetendo à época da escravatura onde os escravos eram torturados nos chamados Troncos.

Tendo uma mensagem sensacional e um enredo que auxilia a melhorar ainda mais isso, Jogos Vorazes: Em Chamas nos traz agora a promessa de que os próximos dois filmes serão tão bons quanto ele e seu antecessor - ou, quem sabe, até melhores.

Nota: 9/10

Crítica: "Álbum de Família"

Título original: August: Osage County
EUA, 2013, 120 min.
Direção: John Wells
Roteiro: Tracy Letts (baseado na peça August: Osage County, de Tracy Letts)
Elenco: Meryl Streep, Julia Roberts, Ewan McGregor, Margo Martindale, Chris Cooper, Abigail Breslin, Julianne Nicholson, Benedict Cumberbatch, Juliette Lewis, Sam Shepard, Misty Upham


"Fugir de seus parentes é afastar-se de si mesmo."
(Petrônio, Satiricon)

por Gabriel George Martins

Cada homem ou mulher na face da Terra mantém variados graus de relacionamento com outrem: um amigo ou amiga, um namorado ou namorada, um colega. A manifestação coletiva desses relacionamentos, não obstante, constitui uma família — que não necessariamente se forma apenas por parentes. Família abrange os seus, aqueles escolhidos para desenhar um círculo de afinidades. Mas há um famoso dito popular que contesta a afirmação, dizendo mais ou menos o seguinte: "Família a gente não escolhe." Nesse caso, obviamente, a frase se refere àquela família mais comum, àquela à qual já nascemos pertencendo, e não podemos nunca deixar de todo, pois "fugir de seus parentes é afastar-se de si mesmo." A família é uma das expressões máximas da individualidade de cada um.

Talvez não possamos mesmo escolher qualquer tipo de família para nós. Uma família feita de amigos e amigos de amigos, por exemplo, pode não ser resultado de uma escolha individual, mas fruto de um fato que se delineou com o correr do tempo e da convivência. As afinidades surgem, e se consolidam — e então surge uma nova "família". Com os parentes, no entanto, tais afinidades podem não ser tão claras. Podem também sumir no decorrer dos anos, nunca chegar a aparecer, ou nem existir. E, se a família é a instituição sagrada por excelência, como o conclamam grupos religiosos ou moralistas por toda a parte, sua sacralidade é logo posta abaixo pelas contradições (inevitáveis, às vezes) entre seus membros, inerentes a si mesma.

Especialmente se se toma por amostra uma família que se ergueu sobre esses mesmos princípios religiosos e moralistas. A estrutura dessa instituição se pauta nas convenções do passado, reproduzidas geração após geração. A edificação, contudo, não pode resistir aos desafios impostos pela chegada dos novos tempos, capazes de trazer à tona problemas já bem antigos. É como o caso hipotético de uma família do Sul (ou Meio-Oeste) dos EUA. É como o caso dos Weston.

Não é preciso avançar muito na projeção de Álbum de Família para perceber como os Weston são utilizados na categoria de figuras representativas de um Sul estadunidense moralmente falido e desesperançado. A sinopse mesmo traz parte dessa tônica: quando o patriarca da família Weston (Shepard), um literato meio desiludido, desaparece de vista, sua esposa Violet (Streep, em interpretação iluminada) chama suas filhas Barbara, Ivy e Karen (Roberts, Nicholson e Lewis, respectivamente) para lhe fazerem companhia. Essas mulheres trazem consigo suas famílias — ou o que podem chamar de uma. E, enquanto cada uma tem de resolver seus próprios problemas internos, também devem lidar com a deterioração física e psicológica da mãe, viciada em remédios, e antigas questões de família.

É importante salientar, porém, o quanto essas "questões" influenciam nos atritos de cada núcleo familiar. Em se tratando da personagem de Roberts, nota-se a permanência de traços bastante específicos do caráter da mãe vivida por Streep. Isso fica claro em uma sequência, já próxima ao final (sem spoilers), na qual, procurando se defender de uma acusação feita por Ivy, Barbara diz ter sido culpa da mãe o ocorrido, ao que a irmã logo retruca: "Que diferença faz?" Há uma certa fúria inerente em Barbara, um jeito desbocado, que não se rende nem mesmo à presença de sua filha de 14 anos (Breslin). A menina, uma rebelde, assim como Barbara o é para com Violet, recebe alguma parcela de culpa por suas transgressões, dividindo a autoria dessas faltas com o pai (McGregor) aos olhos da mãe. Mas Barbara não é capaz de reconhecer a sua própria contribuição no processo de alienação da filha, assim como Violet é incapaz de reconhecer o erro no tratamento de Barbara.

Violet, ademais, não parece se importar com muitas coisas — ou nem se dá conta delas —, não hesitando em pronunciar aos quatro ventos certas "verdades" capazes de ferir os sentimentos dos outros integrantes da família. Mas, também, pessoas que não são membros dos Weston acabam vitimadas por suas declarações, como a empregada da casa, Johnna (Upham). Algumas falas de Violet são carregadas de um racismo latente, porém não menos ofensivo — o pó de uma História marcada pela exploração escravocrata do Sul e pela jornada ao Oeste, a conquista dos territórios indígenas (Johnna é descendente desses indígenas). Em simultâneo, o restante da família, tão impregnado de ideias retrógradas quando Violet, desdenha do vegetarianismo da filha de Barbara — e outra vez a menina sofre, com (atenção, spoiler!) a insinuação de sua tia Karen de que a tentativa de assédio da qual a jovem fora vítima haveria sido, em parte, provocado por ela (algo aceito quase que passivamente pela mãe da garota).

Esses detalhes todos constituem ferramentas, importantes ferramentas para a revisão, e consequente destruição, dos valores familiares sulinos nas mãos do roteirista Tracy Letts (cujo texto adapta uma peça homônima de sua autoria). Letts se utiliza desses artifícios, cada nuance discreta no comportamento de suas crias, para fazer seu comentário do Sul, carregado de humor negro e uma dramaticidade apreensível de cada situação. Letts — autor ainda do roteiro de Killer Joe — Matador de Aluguel (também baseado em uma peça sua), outra história sobre a decadência de uma família sulina — parece ter uma bola de demolição em seus textos, à qual usa a fim de demolir coisas já meio demolidas.

Toda reunião dos Weston termina em uma discussão ou desentendimento, e Letts se aproveita disso para traçar um panorama do Sul e declarar a falência de seu sistema familiar. Apenas para nos darmos conta de que a família já estava arruinada antes. Não à toa, as personagens passeiam por paisagens destruídas. Karen retorna de um passeio ao forte com seu noivo dizendo à família que não conseguiram visitá-lo porque este havia sido desmantelado. Em outros momentos, o público se vê diante de imagens de lugares meio abandonados, placas enferrujadas, e de fotografias dispostas por todo canto da residência dos Weston — sempre retratando a glória (aparente) de um passado que em nada corresponde ao fracasso da atualidade.

Mas nem tudo em Álbum de Família se mostra cruel e mordaz, como o pretende Letts; e isso se deve ao seu diretor. Se, em Killer Joe, Letts teve um William Friedkin conduzindo seu trabalho num crescendo de suspense e controvérsia, ainda mantendo o tom ácido-cômico do roteiro e levando a película a um desfecho chocante — o homem da vez, John Wells (A Grande Virada), prefere investir no melodrama. E, diga-se, num melodrama que compete com a corrosividade de Letts. Apostando em planos que valorizam o choro das personagens, em detrimento de toda uma contexto que as cerca, Wells busca o choro do público, numa ação tipicamente spielbergiana. Inclusive, sua opção de subir a dramática música de Gustavo Santaolalla em situações-limite soa formulaica em alguns pontos (embora acertada em outros). Mais: não se contentando com sua opção pela lágrima em demasia, Wells escala um grande elenco do qual não fará uso pleno. Benedict Cumberbatch é subaproveitado em seu papel, surgindo no meio do longa apenas para desaparecer inadequadamente em algum ponto; além disso, sua personagem é desenvolvida de modo a implorar a compaixão do espectador, quando todas as outras não o procuram em instante algum.

Por sorte, leva a melhor a mente mais criativa por trás da obra; Letts se sobressai, e, não obstante o comando de Wells diminua o impacto do texto, o filme permanece forte, permeado de temas complexos e trabalhados de maneira salutar. Letts e Wells, juntos, afinal de contas, pintam um retrato elaborado da vivência em família, dos momentos difíceis de uma, da sensação de se estar em uma — e depois bagunçam-no com a herança de anos e anos de passado sujo, empoeirado, guardado num velho álbum de família a que só seus membros têm acesso. Nós, em nossa natural curiosidade de espectadores, queremos dar uma espiada nesse retrato e nesse álbum, mas os membros da família não têm esse desejo. Há o medo de que, olhando para o passado, descubra-se a verdade sobre o presente. É um medo comum; nós também o temos.

Nota: 8/10