sexta-feira, 7 de março de 2014

Crítica: "RoboCop"

Título original:  RoboCop
EUA/ Brasil, 2013, 120 min.
Direção: José Padilha
Roteiro: Joshua Zetumer (baseado no filme RoboCop, de Paul Verhoeven)
Elenco: Joel Kinnaman, Samuel L. Jackson, Michael Keaton, Gary Oldman, Jackie Earle Haley.


"Sensacional."


por Bruno Albuquerque

Fica até difícil falar algo mais sobre o filme, pois todos os mais respeitados sites sobre cinema do país já o fizeram suficientemente bem. Porém, pela minha enorme admiração por José Padilha, não só por ser um realizador magnífico mas por, também, estar abrindo diversas portas para o Brasil em Hollywood, me vejo na obrigação de expressar o que achei de seu primeiro longa-metragem produzido na terra do Tio Sam: RoboCop, o remake do clássico cult de Paul Verhoeven.

O longa de Verhoeven é sensacional. Trazendo consigo uma crítica social brutal (com menções ao gosto extremamente acéfalo da população por cultura ruim e vazia, claras menções à venda da mídia às grandes corporações – os comerciais de produtos imbecis no meio de telejornais é a prova disso – e como as mesmas conseguem controlar não só a política mas a cidade como um todo), o filme oitentista conquistou mais de uma geração inteira de fãs, sendo relembrado até hoje, principalmente por conta de seu icônico protagonista: Alex Murphy, o RoboCop, que nada mais era do que o ideal de homem americano, justo, dedicado ao trabalho e preocupado com a família. O drama vivido pelo personagem é incrivelmente bem trabalhado, paralelamente às críticas sociais já mencionadas, principalmente pela interação com o público antes e, principalmente, depois do evento que quase o mata (e é interessante reparar como descobrimos bastante sobre ele apenas, depois de já ter sido transformado em robô, quando este volta ao seu passado, revisitando sua antiga casa). Porém, com diversos momentos do filme dedicados aos empresários, suas características negativas e como conseguem controlar absolutamente tudo, o foco do filme acabou sendo mais filosófico e questionador sobre o que acontece no mundo de uma maneira geral do que abordar de forma suficiente o enorme potencial do protagonista que tinha em mãos.

Já o longa de Padilha é inteligente ao focar na retratação do lado de RoboCop que não conhecemos: o humano. Assim como no filme anterior, vemos a vida de Murphy antes do ocorrido que o transforma no policial robotizado – com a diferença de que, no original, vemos apenas a vida profissional dele e, aqui, a pessoal e o que o tornam o homem que é se tornam o destaque. Isso ajuda a vivermos melhor o drama do personagem, conhecendo-o mais profundamente e às pessoas que ama (o que só é abordado no de Verhoeven superficialmente) e a, principalmente, sofrermos junto com ele em uma cena angustiante: a em que, após ser atingido pela explosão de seu carro, Murphy observa em um espelho tudo o que sobrou de si (apenas a cabeça, os pulmões e o coração, no caso).



O filme não é uma maravilha inteira, assim como quase toda super-produção de Hollywood: o personagem de Jackie Earle Haley, além de caricato, desperdiça todo o enorme potencial de seu intérprete, que fez um trabalho fenomenal em Watchmen como o anti-herói Rorschach. Alguns estereótipos acabam por levar o filme a caminhos demasiadamente comuns (leia-se: clichês) inevitavelmente: a esposa de Murphy é extremamente unidimensional, assim como o vilão da trama, que pelo menos é interpretado na medida certa pelo ótimo Michael Keaton.

Independente disso, o filme é só elogios – ainda mais se considerarmos a coragem e perseverança de Padilha em exigir do estúdio aquilo que ele queria (o cineasta conseguiu marcar ensaios com os atores antes das gravações, assim como trazer do Brasil parte de sua equipe técnica). As referências ao filme original estão no ponto, surgindo organicamente durante a narrativa, seja na trilha sonora, seja numa breve fala de algum personagem. O figurino do “metade homem, metade máquina, inteiramente policial” é extremamente funcional: quando a empresa que o financiou começa mandar nele e insiste para apagarem de si toda a sua essência humana, o traje muda de cinza esbranquiçado – que lembra muito o do filme original – para um preto quase militar, para, ao final do filme, quando ele reencontra sua família após voltar ao seu normal, retornar em seu cinza claro.

Assim como aborda temas interessantíssimos, como a intervenção militar norte-americana em territórios estrangeiros e a manipulação midiática (o personagem de Samuel L. Jackson é IMPAGÁVEL, e remete muito ao apresentador de TV de Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro), mas, acima de tudo, levanta um questionamento filosófico super interessante: o que é ser um humano? O que nos define humanos? Seria a nossa essência, nossa forma e constituição física... ou nossos pensamentos e sentimentos? Murphy é o meio utilizado pelo ótimo roteiro de Joshua Zetumer para estabelecer a abordagem do tema: quando movido pelo coração, RoboCop age instintivamente e guiado, geralmente, pelo amor que sente à sua família. Quando sua mente é apagada e passa a agir única e exclusivamente como um robô, o personagem segue as diretrizes que nele foram implantadas. E como toda boa ficção-científica, o RoboCop de Padilha acerta em cheio no quesito “usar a ciência para falar da natureza humana”: logo no início da projeção, temos uma linda cena aonde um violonista que perdera as mãos volta a tocar seu instrumento, agora com próteses mecânicas. Um detalhe que pode passar despercebido pela maioria é que, quando este mesmo violonista, que até então tocava uma linda melodia sem problemas aparentes, erra algumas notas isso acontece somente após ele deixar seus sentimentos sobressaírem-se sobre si. É nessa cena em que Padilha nos mostra a segurança que tinha sobre o tema abordado e sua opinião sobre. É brilhante.


RoboCop, de José Padilha, é um filme seguro de si, executado cuidadosa e magistralmente e sendo mais uma bela obra no currículo do diretor brasileiro com o maior potencial cinematográfico atualmente.


"Vivo ou morto... você vem comigo!"

Nota: 9/10

domingo, 2 de março de 2014

Crítica: "Philomena"

Título original: Philomena
Reino Unido/França/EUA, 2013, 98 min.
Direção: Stephen Frears
Roteiro: Steve Coogan, Jeff Pope (baseado na biografia Philomena, de Martin Sixsmith)
Elenco: Judi Dench, Steve Coogan, Sophie Kennedy Clark, Michelle Fairley, Mare Winningham, Barbara Jefford, Peter Hermann, Kate Fleetwood




por Gabriel George Martins

Um tipo de gênero jornalístico que sempre fez sucesso junto ao público foram as "histórias de interesse humano". Geralmente são reportagens que resumem, contextualizam e exploram o valor emocional de um relato, de uma vida. Trazem contos da realidade, narrativas sofridas de pessoas sofridas, prontas a fazer os leitores sofrerem do mesmo modo — se possível, na mesma intensidade.

Mas o interesse humano não se reduz aos jornais e revistas. Extrapola o jornalismo, e alcança a Literatura — arte com a qual as matérias escritas podem se confundir — e a TV (com aqueles montes de programas de auditório sobre casos de família, histórias de vida, testes de fidelidade, etc.). Até o Cinema é atingido frequentemente, com seus "baseado em fatos reais", suas trilhas sonoras lacrimosas, suas interpretações exageradas.

O caminho preferível a esses filmes é sempre o de evitar ao máximo se assumir como "história de interesse humano". Algo que pode ser alcançado com mudanças na abordagem, no tom, no foco, na discussão iniciada. Philomena, novo trabalho de Stephen Frears (Ligações Perigosas, A Rainha), é desses casos em que uma história de interesse humano procura se disfarçar a todo custo, revestindo-se reflexões ideológicas. Decorre que, não atingindo por completo o objetivo, o longa se assume como tal, e exibe alguns dos clássicos clichês do tipo.

Muito provavelmente porque a obra parte da própria construção de uma história de interesse humano.

Martin Sixsmith (Coogan), ex-repórter da BBC e atual centro de um escândalo político, vê sua carreira desandar pouco a pouco. Planeja escrever um livro sobre a História da Rússia, mas não encontra disposição para isso. Sujeito arrogante, ele não tem vontade alguma de escrever matérias de interesse humano. Mas é convencido do contrário pela editora Sally Mitchell (Fairley) e pela história de potencial sucesso de Philomena Lee (Dench, quando velha; Kennedy Clark, quando nova), idosa que há muitos anos teve seu filho vendido por uma instituição religiosa irlandesa, à qual pertencia, a um casal de americanos. Martin e Philomena agora procurarão pelo filho perdido, após tanto tempo, na distante terra dos EUA, enquanto ele tem de lidar com o comportamento superprotetor dela.

Parece qualquer dos muitos filmes produzidos em escala industrial na Hollywood de hoje (poderia ser também na de ontem). Mas o longa se beneficia do roteiro — escrito a quatro mãos por Jeff Pope e pelo próprio Coogan — e da produção majoritariamente inglesa para tentar driblar esse esteriótipo. Funciona em certa medida.

O longa lança luz a um curioso questionamento de preceitos e doutrinas católicas, do mal que elas podem acarretar. A problematização está centrada na figura de Sixsmith, ateu convicto, cujo choque com a fé de Philomena produz o núcleo de discussão da obra. Philomena que, apesar de sofrer com as atitudes ferozes da irmã Hildegarde (Jefford, velha; Fleetwood, nova), aceita naturalmente a culpa que lhe é imputada: ter feito sexo antes do casamento, com um desconhecido, e assim ter engravidado. Sua punição, os trabalhos forçados e a perda do filho, são aceitos na medida em que pode suportar. Mas Philomena quer reaver a criança — agora adulta. E para isso, só pode contar com a ajuda investigativa de Sixsmith. Não obstante, ele a questionará, questionará sua religião e sua necessidade por uma.

Na persona de Sixsmith, Coogan e Pope depositam o inquérito de fundamento ideológico do longa. E, aproveitando o background político da personagem, inserem uma alfinetada no Partido Republicano estadunidense — partido cuja orientação religiosa dos membros, conservadores, termina por influir em políticas científicas, criminais e, sobretudo, sociais. É uma fina ironia que (spoiler!) descubra-se ter sido o filho de Philomena um membro do Partido Republicano e, ao mesmo tempo, um homossexual.

É justamente nesse momento que o longa assume posição crítica aos EUA — na medida em que seu primeiro ato seja um "estudo" sobre a religião predominante na Irlanda, e as consequências disso para a população. Influência, talvez, da parte da produção atribuído à The Weinstein Co.? Se sim, é possível que isso explique também, mais ou menos, o restante das decisões cinematográficas. Algumas delas equivocadas.

Frears, não conseguindo manter o equilibrado clima do longa, descamba para o melodrama forçado em pontos chave. Algo corroborado pela melosa e trivial trilha de Alexandre Desplat, pronta para realçar a emoção de qualquer cena. É quando o filme assume sua vertente história de interesse humano — coisa que o próprio Sixsmith define, em uma fala, como coisas para "pessoas vulneráveis, de mente fraca e ignorantes". Em contraste, o diretor utiliza estranhos expedientes de filmes de mistérios no desenvolvimento da trama. Como se a personagem de Sixsmith, ao invés de um jornalista, funcionasse como um detetive à procura de um criminoso, e Philomena uma vítima sobrevivente, buscando justiça. É uma subversão que soaria interessante, se não negasse as proposições dadas às personagens: um jornalista desiludido, e uma mãe idosa. Frears chega ao cúmulo de inteoduzir um clichê final de filmes de detetive, um velho "tudo termina onde começa" que não desce bem para um drama.

Mas, se o começo é o fim, e vice-versa, então Philomena começar no interesse humano e acabar no mesmo não é de intenso problema. Não sendo um grande filme, mas sendo simpático o suficiente, é bastante possível que algum verdadeiro interesse humano se desenvolva pelo enredo. A dor de uma mãe, de Philomena Lee, é cara ao Cinema como o são muitas outras dores, e não nos cabe defini-la de imediato como desinteressante.

Pelo contrário: tudo se desenvolve no interesse que temos pela vida de outrem. Apenas o sensacionalismo, a exploração desonesta disso é que pode faze-la vida pobre, vazia. Felizmente, Philomena não é assim — embora se aproxime perigosamente da condição. Mais uma vez, não é grande obra. Mas obra decente, eficaz a sua maneira. De interesse humano.

Nota: 7/10

Crítica: "Clube de Compras Dallas"

Título original: Dallas Buyers Club
EUA, 2013, 116 min.
Direção: Jean-Marc Vallée
Roteiro: Craig Borten, Melisa Wallack
Elenco: Matthew McConaughey, Jared Leto, Jennifer Garner, Dennis O'Hare, Steve Zahn





"Não apenas um retrato de sua era ou um drama sobre pessoas que convivem com a AIDS, mas também um filme sobre evolução espiritual."

por Bruno Albuquerque

É incrível como há uma infinidade de filmes sobre pessoas com doenças terminais com o único propósito de emocionar o público, o que acaba prejudicando sua produção e os tornando em meros melodramas. Ao ouvir de diversos amigos que Clube de Compras Dallas era "incrivelmente emocionante e maravilhosamente tocante", imediatamente coloquei um pé atrás ao começar a assisti-lo. Fui esperando um longa com cenas feitas para unicamente comover o público, fazê-lo chorar e, por conseguir isso, convence-los de que é um bom filme (mesmo que talvez nem seja). Porém, me surpreendi: o longa não só utiliza de maneira surpreendentemente original sua temática como, algo que admiro em todo filme que se presta a fazer isso, utiliza todos os recursos apresentados em tela para colocar a narrativa para frente.

Se for feita uma rápida pesquisa pela internet, logo se descobre a preocupação do governo e de diversos sites de saúde em recomendar ao leitor que esteja com alguns sintomas da infecção do HIV para irem logo realizar um exame de sangue, para descobrirem se possuem ou não o vírus. Isso, claramente, é um reflexo da ignorância das pessoas para com sua saúde, que constantemente não ligam para sinais de deficiência imunológica simplesmente por medo do que podem descobrir. Clube de Compras já começa original nesse aspecto: seu principal foco é a maneira com a qual Ron Woodroof, interpretado magnificamente por Matthew McConaughey, encara a doença, começando como a grande maioria ao não aceitar a sua condição e mentindo para si mesmo ao tentar continuar com sua vida normal. E tal mentira é evidenciada quando ele vai até uma biblioteca, para pesquisar sobre o assunto e logo em seguida corre para o hospital, para descobrir como poderia se tratar. E a evolução espiritual do personagem tem início ai.

O roteiro do filme é brilhante e em nenhum momento extravagante, o que auxilia bastante na identificação com o público. O próprio faz questão de desenvolver Woodroof como um cara entregue aos seus vícios, com diversos preconceitos enraizados em si e a sua preguiça intelectual ao aceitar inquestionavelmente a vida sem graça que leva., para, com o decorrer do filme, mostrar sua evolução, ao correr atrás de uma maneira de ganhar a vida que se adequasse à sua atual condição, assim como perde seus preconceitos e se livra de seus vícios. Como já dito no texto, Dallas Buyers é um longa sobre a evolução espiritual, principalmente a de seu protagonista. Matthew McConaughey é de uma entrega impressionante ao seu papel, não só pela sua fragilíssima consistência física, mas por suas expressões de ódio e desprezo, mesmo sendo um homem a beira da morte e de pesadíssima fraqueza. Não demora muito para esquecermos que o que estamos assistindo na verdade é um ator fingindo ser outra pessoa, para aceitarmos que aquele homem que ali estamos vendo é real. O mesmo acontece com Jared Leto, que indubitavelmente levará o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante para casa esse ano, com toda sua carga emocional utilizada para auxiliar seu personagem, assim como para evidenciar todo o drama que vive por conta de sua doença. Destaco também a cena em que este não consegue conter sua felicidade em meio ao seu espanto ao ver Woodroof forçar um amigo homofóbico a cumprimentá-lo - esta que, talvez, é minha cena favorita no filme, pois não mostra o melhoramento de caráter do protagonista pelas suas atitudes, mas sim pela reação das pessoas que convivem com ele (assim como a doutora interpretada por Jennifer Garner, na cena do restaurante).

Atenção: alguns spoilers a frente!

Porém, o longa não é livre de defeitos: após a morte da personagem de Jared Leto, não sentimos a tristeza que o filme queria nos passar. E o único motivo é que não fomos apresentados àquela persona com a mesma profundidade que fomos apresentados ao protagonista. Não sofremos junto com o namorado dela, quando este chora após ver Woodroof chegando ao hospital, pois ele é um personagem incrivelmente unidimensional. Agora nem lembro o seu nome, nem sei se ele fora mencionado em algum momento.

Entretanto, os pontos negativos se limitam a este. A fotografia do filme é certeira ao, assim como feito no sensacional Only God Forgives, determinar cores específicas para determinados estados de espírito vividos pelos personagens: o amarelo, para a vida de vícios de Woodroof (note como a primeira cena do filme, aonde ele faz sexo com duas mulheres, possui a mesma paleta de cores da cena em que ele faz sexo com uma outra mulher, agora no seu escritório). E, próximo ao final do longa, aonde tudo parece caminhar para uma paz estável, e somos inundados por um azul claro, simbolizando a calmaria que está tomando conta do filme.

Com atuações brilhantes, um roteiro riquíssimo e uma temática abordada de forma original, Dallas Buyers Club é um dos maiores merecedores dos prêmios para os quais está sendo indicado no Oscar 2014, e vale totalmente a conferida.

Nota: 9/10

sábado, 1 de março de 2014

Crítica: "Ela"

Título original: Her
EUA, 2013, 126 min.
Direção: Spike Jonze
Roteiro: Spike Jonze
Elenco: Joaquin Phoenix, Scarlett Johansson, Amy Adams, Chris Pratt, Rooney Mara, Olivia Wilde, Matt Letscher




por Gabriel George Martins

De todas as pessoas que conheço, encontrei uma dezena delas — acho — pela internet. Nada de estranho nisso. Falar pessoalmente pela primeira com alguém já foi tarefa complicadíssima para mim. Mas falar pessoalmente com alguém depois de conhecê-lo pela internet me parecia fácil. Pelo menos duas dessas pessoas se tornoram boas amigas, com as quais mal falo pela internet, atualmente; mas com as quais também mantenho conversas bastante razoáveis em pessoa.

Aliás, deixei de ser mais sociável pela internet; agora, é mais simples conhecer alguém primeiro de forma presencial, para depois adicioná-la ao Facebook, trocar mensagens, etc. Fui na contra-mão dos tempos.

Mas afinal, o que é presencial no mundo de hoje? Ignorando barreiras físicas, podemos estar em dois lugares ao mesmo tempo, fazendo duas tarefas em diferentes espaços. Duas ou mais. A modernidade subverte, todos dias, um pouquinho mais de nossa ideia de indiretividade. Tudo é direto, se houver um bom smartphone, um bom aplicativo de mensagens instantâneas e uma boa conexão wi-fi ou 3G. Nestes dias estranhos, os relacionamentos pessoais tornam-se objeto do tempo e do espaço, na medida em que interferem na compreensão do primeiro, e no uso do segundo. O aparato físico é modificado, repensado, um pouco mais, a todo instante, a cada vírgula,

Ela é um dos mais notáveis esforços de compreensão disso. Partindo de um dos temas mais caros à Sétima Arte — uma história de amor —, o longa de Spike Jonze (Quero Ser John Malkovich, Adaptação) se pretende a estudo dos relacionamentos na era sem fio, mas se transforma também numa discussão sobre a própria evolução humana.

Situado no nada distante ano de 2025, o longa nos apresenta a Theodore Twombly (Phoenix), um homem solitário, de poucos amigos, cuja vida se vê atormentada por um processo de divórcio. Ele nada mais tem o que fazer da vida senão trabalhar, ficar pensando na ex-mulher (Mara) e vagar pela cidade. Numa dessas andanças, acaba descobrindo o miraculoso OS1 da Element Software, um sistema operacional de inteligência artificial que promete facilitar ainda mais a vida da população. Comprado o produto, instalado o sistema, Theodore conhece Samantha (Johansson), a voz do OS, uma criação capaz de ter ideias, sentimentos e convicções próprias. E o que seria apenas uma relação de trabalho se transforma em coleguismo. Amizade. Romance.

Nada em Ela pode ser considerado rigorosamente futurista. Nem pelos contornos da cidade, nem pelo tipo de relação mantido pelos humanos entre si. No primeiro caso, uma mistura das Los Angeles e Shangai atuais providencia o ambiente de ficção científica, de um presente sem toda a sujeira e decadência. Inclusive, as linhas do metrô da cidade são perfeitas, e se interligam com fluidez; abrangem até estações de bairros inventados. Mas, porquanto o futuro de Jonze seja mais utópico que distópico, ainda é futuro, na medida em que trata de lugares, pessoas e tecnologias em um ano que não conhecemos. E ainda é ficção científica, já que, não se realizando em nosso momento histórico, a obra nos reflete ao abordar o ápice da "indiretividade" nas relações humanas.

Extrapolação da modernidade, Ela traz um futuro no qual os relacionamentos mal se dão presencialmente. Na rua, as pessoas não interagem entre si: ou estão sozinhas, como Theodore; ou, se acompanhadas e conversando, muitas vezes trazem seguros seus smartphones nas mãos. Afinal, é preciso estar em dois lugares, em dois tempos, em simultâneo, a consciência dividida. Entretanto, cabe repetir a pergunta de parágrafos acima: o que é presencial no mundo de hoje?

Theodore e Samantha namoram; mas isso seria possível? Ela não tem corpo, mas pode sentir. Sentir o amor de Theo, sua delicadeza — até o sexo, numa acepção abstrata, é sentido. Sexo que não demanda corpo. Sinal da modernidade maior não haveria, num mundo como o nosso, onde namoros virtuais, à distância, são comuns, até corriqueiros; onde o sexo é reinventado todo dia, de diferentes formas; onde se aprende que o amor pode ser livre.

Theodore, como nós, ainda não entende nem aceita muito bem tudo isso, não está pronto, apesar de conhecer a fundo o sentimento humano. Ele é praticamente um especialista em relacionamentos: trabalha redigindo cartas de amor para uma agência de cartões (empresa que, de colorida poderia ser o Google). Sua obra comove, encanta, tem apelo literário. Theo compreende o amor. Mas não consegue vivê-lo corretamente, não consegue estar em um relacionamento. Jonze alegoriza a introspectividade do século XXI, de pessoas que, em decorrência de vidas centradas no trabalho e na tecnologia, desaprendem ou se desacostumam a se relacionar com outras pessoas.

Contudo, não é só Theo que sofre disso. Todos parecem sentir algum tipo de desolação diante do desenvolvimento cada vez mais acelerado das relações e da tecnologia — da fusão de ambos. Como se isso os estivesse obrigando a se reinventarem todos os dias, sendo novos e melhores. A amiga de Theo, Amy (Adams), sente o mesmo com seu namorado, Charles (Letscher), incapaz de ver qualidade em suas produções. Amy também recorre a um OS, e também termina por estabelecer um laço de amizade com a máquina-humana.

Buscando ressaltar essa especial sensação, Jonze se esforça para não chamar atenção aos cenários mais que às suas personagens — embora não funcione muito com os planos aéreos. É impossível não reparar na beleza estéril dessas construções, fazendo uma ode velada ao patamar que o engenho humano alcançou, e o contrastando com a miséria emocional das pessoas.

Também é evocativa a trilha sonora, executada pela prodigiosa banda indie Arcade Fire. (Jonze já havia dirigido para o grupo o videoclipe de The Suburbs, que por sua vez é composto por excertos do curta Scenes from the Suburbs, de sua autoria.) Afogadas em sintetizadores, as canções tramitam entre o doce e o "tecnológico". Os sons mais eletrônicos, em específico, ressaltam a onipresença da tecnologia no espaço — e no tempo. Computadores, smartphones, videogames, elevadores, por aí em todos os lugares. Samantha, como eles, em várias localidades — mas não em espaços físicos. Não como pensamos. As dimensões alteradas do que é físico permitem a ela estar em tudo, como o quereriam os humanos de carne e osso.

Samantha é o auge da simultaneidade das relações. Enquanto conversa com Theodore, pode ler diversos livros, conversas com outros OSs e outras pessoas, acumular mais informação do que nós, humanos, somos capazes. Mas nós, demasiado humanos que somos, também buscamos ultrapassar nossos limites, acumular quantidades imensas de informação em pouquíssimo tempo. A aproximação entre o humano e a máquina é clara e perceptível, e não soa exagerado afirmar que a máquina, no contexto do filme, seja o resultado natural de uma evolução de milhões de anos. Ou antes, ela (Ela) é só mais um passo nesse processo, caminhando ao próximo passo, e depois ao seguinte, em velocidade espantosa.

Pode ser feita uma (pen)última pergunta: o relacionamento entre humanos e OSs (máquinas) não seria um meio de escapar ao real, isto é, fugir da natureza humana? Assim, nossa debandada coletiva para as telas dos tablets e perfis de Facebook e WhatsApp não seria a negação do mundo como é? É possível. Mas o real não é uma convenção social. Ele se modifica com o avanço da percepção, com a disseminação da informação e do conhecimento. O que fez Spike Jonze foi entender o fato, e construir sua fábula moderna em cima dele. Jonze aceitou a modernidade, e reproduziu o amor como ele é por estes dias. Somente acentuou-a, ampliou-a para um futuro-presente.

E desse futuro, aonde iremos?

Quem sabe, a um novo nível de modernidade. Porque ela é tudo o que é, a todo momento. Ela se realiza no tempo e no espaço. Em todas as pessoas. Adjunta a eles, avança, sem fim, obscura em destino. Ela é a modernidade.

Nota: 8/10